boeing 707
sento-me no único lugar vazio
— uma coisa não pode estar onde
já está outra, dizia a adelaide
sobrepondo uma mão
em cima da primeira, o coração
pisando o segundo comendo
um terceiro matrioskas mal paridas
desaguam aqui, fábricas internacionais
de saudade: globalização
é composta apenas por água salgada e
boeings 707 e ainda acho imoral
que o rápido seja tão
longe, devia ser tudo mais
ao ritmo das pernas e carroças,
mas ninguém me mandou
parar aqui para um cigarro
e um café
ninguém me mandou
sair ontem do escritório tão tarde
(se nunca saíres de um lugar
não te pedem que vás)
porque não há como uma coisa
estar onde já está a outra
e o coração come-se a si mesmo, sobretudo
se descansar, vai tudo correr bem,
então se é para correr
maratonista de avião boeing 707
como consequência directa
de um café em rosenthaler platz
em final de outubro, faz um ano
que decidi que não devia estar
onde estava antes
ocupei silenciosa o lugar de ninguém
que me cedeu a única
cadeira de três pernas: compreende,
uma coisa não pode estar onde já está outra:
ninguém estava lá
eu ainda estou
eu ainda vou
e se sobrar bateria
ainda acabo o relatório ficheiro excell
de todas as vezes que me comeram viva
e eu nem pestanejava,
tão globalizada que voava
com o peito inchado
em combustão.
atlas
parada nos semáforos
a minha mãe fumava
estacionada ao fundo das memórias
o último cigarro que a vi fumar
ainda me recordo
a outra mãe
estaria perto de morrer
e a minha
fumava
com a angst de quem foi
menos amada do que o merecido
mesmo assim carregava as queixas
fraldas contas o peso transladado
degrau a degrau
o olhar dela inolvidável
naquele espelho de retrovisor
(só uma matriarca saberia
enterrar outra)
minha mãe-atlas
eu via
e não sabia ainda
de mitologia grega
mas um dia vais entender
ela repetia
e só quando anteontem
me sugaram pelo umbigo
qualquer dose de indizível
(dói sempre quando decides
tirar algo enroscado na carne)
fazia um tornado em berlin
eu tinha saído na mesma à rua
e chorava agora para dentro
naquela maca improvisada,
a christina dizia, o corpo tem memória
e é do umbigo que vem
a saudade do ventre
as árvores caíam lá fora
raízes monstras inteiras sugadas
do chão e a minha mãe
a dois mil e oitenta e quatro
cigarros fumados
naquele renault clio bordeaux
no ano de mil novecentos e noventa e oito
quando eu não sabia ainda
de mitologia grega ou que a mãe
deixaria de fumar pouco mais tarde
eu ainda não sabia
da vénus de milo da carla
desenhada a sangue menstrual ou da
mulher turca abraçando o filho asmático
na piscina pública de kreuzberg
mas podia adivinhar já
alguns semáforos ininterruptos
a memória do umbigo
esta solidão hereditária
cromossoma X.
de quem é o corpo
de quem é o corpo
se me lês em detalhe
ao pequeno-almoço
o manual masculino
sabiamente pensado para
viagens não ponderadas
de quem é o corpo
se te vens indevidamente
enquanto o meu útero desfeito
em flores canta o prazer
de se refazer todos os meses
de quem é o corpo
se na minha arca de noé
não houve nunca pombas
que definam tempo de regresso
a terra firme
de quem é o corpo
se sabendo da deriva
antecipas um terceiro corpo
que não chegando já chegaria
com direito a carta de despejo
de quem é o manual
de quem é o discurso
de quem é a viagem
se por me calar à janela
consinto que sejam
as tuas invasões
a definir o marco territorial
do meu útero
e sobretudo de quem é o corte
quem é aqui porta-estandarte
se a diferença entre
o que entra e o que fica
depende somente da força
com que a minha mão
decide guardar
um punhado de nozes.
ouve,
isto não é um poema
vai falar das convulsões
dos delírios de ovos dançantes
da paragem de digestão
escuta, se isto não é um poema
dá licença eu mencionar
a casa doente
os restos excessivos
da ceia de natal
a apodrecer junto ao
silêncio
que todos comem
porque a mãe dorme,
e a casa tão bonita
enfeitada com o primor
de quem preparou
a mesa mais solitária do ano,
isto podia ser um poema
mas não há amor que redima
a mãe do xanax e do seroxat
que sonha com fadas
cor-de-rosa e que ama
o amarelo
porque é a cor da pulseira
que lhe dão
e ela fica tão feliz,
a mãe que nunca foi tão bela
mas mostra a barriga
na urgência psiquiátrica
e diz
olha, pareço um buda
e chora, chora tanto
com medo que o amor
a tenha largado de vez,
e eu aqui
a ver tudo de longe
eu gostava tanto que isto
fosse um poema
mas não é possível redimir
este natal
já não dá
para perdoar os trezentos e
sessenta e cinco
dias deste maldito ano atrófico,
as sessenta miligramas
no estômago da mãe
as convulsões e a espuma
ao canto da boca.
ela dorme tardes inteiras
com medo das vozes na cabeça
e das vozes da beleza
e sonha com passeios
pelo parque da cidade
antes de adormecer
em posição fetal,
a mãe pede muito
que ninguém a veja assim
eu gostava que isto
sim, eu gostava tanto
isto podia ser um poema
a mãe podia estar boa
quando
pergunto
quando
este poema
podia não ser assim tão triste
mas a mãe
a mãe dorme
a mãe dorme
tão bonita
e eu não esqueço,
a mãe dorme
e isto
isto não é um poema.
Francisca Camelo nasceu em 1990 no Porto (Portugal), e está de passagem por Berlim. Entre outras coisas menos românticas, escreve e diz poesia. Tem poemas publicados no blog literário Enfermaria 6 (editado pela Tatiana Faia), nas edições semanais do Nem Só de Gin Vive o Pinguim (Edições Apuro), na revista Flanzine (editada por João Pedro Azul) e na zine anarcobucetalista Mais Pornô Por Favor (pela Adelaide Ivánova), entre outras fanzines feministas. Escreve sobre vísceras e mulheres por não saber escrever sobre outra coisa, e planeja continuar.