três poemas de Andrei Ribas

Receptáculo [ p. 29 ]

com olhos verdes vítreos de boneca
venha Doença querida
venha logo e logo se aconchegue
mas não queira que te peça clemência
— sabe o quanto dá transtorno
a existência?

não vou dizer-te que quero
ver os filhos que nem tenho
crescendo, isso é bobagem
vão se tornar, se já não são no recôndito do meu saco,
piores do que eu, nem vou
pedir-te que aja com calma
ao revés, se viável prossiga
na imediatidade dum tiro,
de um carro a mil que colhe o pedestre na faixa
de qualquer rua ou avenida Borges de Medeiros
porque qualquer cidade tem
uma rua ou avenida Borges de Medeiros
com faixa pra pedestre na qual ele é atropelado
não vou te alertar de parentes que sentirão falta;
a falta ameniza muito com as não muitas posses deixadas

venha logo e logo se assente
no meu sistema circulatório
na minha cabeça turva
livra-me dos sorrisos e apertos de mãos
forçados nos andaimes
da inconsistência do ramo empregatício
ou do quem-pode-manda-mais
das amizades banhadas pelas vantagens
do enfeitar finito camuflando esqueleto e carnes lascados

livra-me dos amores fadados
a terminar carcomidos dali adiante
e da rememoração dos que assim já foram
sem esquecer dos que perfizeram somente atos de encaixe
daquilo que chamam esperança
sem ver a real definição: atraso
some comigo porque minha
covardia é tão inútil tão estática tão arredia —
usa a escrita pra impedir que me retire pedaços todos os dias

Onde? [ p. 83 ]

opaco como o sol
teu rosto
camufla-se em aroma de vulgar
pétala
e cu
nauseante verifico em tese tratar-se de miragem
perco noções básicas de coerência
jogo água no rosto já engelhado
que não desprega
insisto em atiçar a memória
ela me foge lenta e tenaz
procuro semelhanças nas fotos apagadas
da máquina digital
eu mesmo: apaguei-as?
caminha indecisão diante e atrás de mim
rasga tua túnica de verdades
deixa que fique à mercê
de um propósito que confeito

Exupéry [ p. 84 ]

de quando em quando eu, artíficie
vejo-me como o pequeno príncipe
sozinho num mundo só meu
porém sem rosa pra cuidar
por pura sorte, que vá, azar
: de tédio canceroso ela morreu
nisso
basta que pegue meus balões de pássaros
e caia aí na Terra inescrutável?
do que anseio darei de cara com os ralos
sugando-me como saída inevitável
não há raposa a cativar
nem outro personagem a coadjuvar
um avião cairá lá adiante
no piloto verei meu semblante

| do livro Romântico visceral sob o céu fragmentário (Porto Alegre: Editora Artes & Ecos e Editora Bestiário, 2017) | o lançamento é na Feira do Livro de PoA, dia 05/11, às 16h30 |

Andrei Ribas é autor dos livros O monstro (2007), Animais loucos, suspeitos ou lascivos (2013) e Cada amanhecer me dá um soco (Bestiário, 2016). Possui trabalhos reproduzidos nas revistas eletrônicas brasileiras Plural, Flaubert, R.Nott, Pessoa, mallarmargens, 7faces, Subversa, entre outras publicações. Escreveu resenhas e críticas literárias para os sites Amálgama e Homo Literatus.