Madrugada de sábado.
Fila de ambulâncias na porta do hospital.
A emergência fervilhava, grande desastre nas imediações.
A maca da penúltima vítima passou voando, mal tocava as rodinhas nos azulejos do corredor abalroado de colchões improvisados aguardando quem mais viesse. A vítima era um rapaz bonito, moreno, com a testa afundada pelo choque do carro com o poste. Cacos de vidro caíam do corpo tilintando no chão enquanto os enfermeiros gritavam: neurocirurgião, neurocirurgião! Era uma desabalada corrida contra a morte.
A equipe estava exausta. Não dera para sequer fazer aquele rodízio habitual, vocês dormem as primeiras duas horas, enquanto batalhamos, depois é a nossa vez de descansar.
Foi aí, do meio do caos, que chamaram Roberto para atender a mulher desmaiada.
Parecendo irritado e nitidamente aos frangalhos depois de tanta correria para suturar um, imobilizar outro, entrar e sair de cirurgias, Roberto largou a menina de cinco anos com o bracinho quebrado e correu até o leito onde a criatura babava.
Fez o procedimento padrão para esvaziar seu estômago do excesso de barbitúricos e, após a lavagem, colocou o soro na veia. Por fim, ela abriu uns olhos ressacados, sem sorrir. Muitíssimo aborrecida tentou levantar. Roberto explodiu:
— Da próxima vez, vê se não atrapalha! Toma formicida com guaraná! É tiro e queda!
Falou furioso, e virou-se, pois já o chamavam em outro leito.
A mulher fixou os olhos nas costas do médico que se afastava como quem cravasse um punhal: ódio puro.
Chegou ao leito da criança ensanguentada que uivava.
— Pediatria! Pediatria! Clamou enquanto apertava o torniquete na coxinha fina.
A estudante que o auxiliava estranhou o modo ríspido de Roberto com a pobre suicida frustrada. Afinal, ele deveria tê-la tratado com mais atenção, apesar de seu evidente cansaço. Fizera o juramento de Hipócrates, jamais causar dor, sempre aliviá-la.
Voltou, assim, constrangida, para a cama onde a haviam deixado, com esperança de reduzir o dano, dar um pouco de apoio à criatura, mas encontrou o leito vazio. Havia fugido. Escreveriam em sua ficha: alta à revelia, caso encerrado.
Uma semana depois, no mesmo horário, a mesma mulher deu entrada no hospital. Em coma irreversível.
— Doutor Roberto, dessa ela não sai, de formicida com guaraná ninguém escapa! O tom de voz do enfermeiro era quase sarcástico, como se parabenizasse o médico: “Viu? Você a matou! Que sucesso!”
A estudante ficou chocada. Roberto baqueou. Sentado na beira da cama, de onde retiravam o corpo já sem vida, cobriu o rosto com as mãos para que não o vissem chorar, mas os ombros subiam e desciam, denunciando os soluços.
Em seguida, tirou o jaleco e se foi.
Anos mais tarde, já formada, a moça que o auxiliava naqueles dias tormentosos, soube que Roberto abandonara a medicina.
Na época, sacou o dinheiro do Fundo de Garantia, juntou ao que havia guardado a vida toda e comprou um barranco no garimpo de Serra Pelada.
Achou muito ouro naquele formigueiro humano, ficou milionário, gastou tudo nos bordéis de quinta categoria, pegou sífilis e não se tratou.
A doença comeu parte de seu cérebro.
No final, só repetia como um refrão macabro:
— Formicida com guaraná! Tiro e queda! Formicida com guaraná! Tiro e queda!
Morreu jovem, ainda.
Trinta anos, na flor da idade.
Regina Taccola é médica, psicanalista e escritora. Autora do livro Uma tarde embalada pelo mar (contos, 2016). Seu conto “O Eunuco” sairá na Antologia de Cem Mulheres Latino-americanas, organizada por Sidney Rocha.