1. é a lei
— Não vou!
— É para o seu bem, filho. Quero você curado.
— Não tô doente.
— Segundo a Lei, tá sim. Você vai.
— Eu fujo.
— Dá só uma olhada…
Pela fresta da janela ele viu: do lado de fora havia policiais, cães, viaturas, ambulâncias, bombeiros, vizinhos, católicos , evangélicos.
— Que palhaçada é essa?
— É a Lei, filho. Só queremos o seu bem.
* * *
Dez minutos depois o policial o deixou na sala de espera, algemado.
— Doutor — falou ele —, o rapaz chegou. Aqui está a chave.
— É seguro? — perguntou o psicólogo. — Corro algum risco?
— Acho que não, mas é bom não facilitar. Essa gente, sabe como é…
O psicólogo fechou a porta do consultório e ligou para o juiz.
— Tem certeza que isso é necessário, Excelência?
— É a Lei, doutor. Cumpra-se.
Com a chave na mão, o psicólogo se aproximou e retirou as algemas do rapaz.
— Pode ir.
— Não tô doente, doutor.
— Sei disso. Mas eles estão.
2. benditas sejam as pessoas de bem
Dois olhos vermelhos surgiram na escuridão; outros quatro apareceram logo em seguida. Quando o primeiro raio de sol atingiu a cidade, centenas de pares de olhos, vermelhíssimos, avançaram em direção à casa do pervertido.
O grupo de olhos vermelhos era bem heterogêneo: homens, mulheres, crianças espumando de pura raiva. A grande maioria vinha armada de paus, pedras, pistolas, estiletes. Sabiam todos que só o sangue poderia devolver a harmonia perdida.
— Invadimos ou esperamos ele sair? — perguntou uma mulher que tentava conter o avanço do seu cão.
— Devemos orar — disse o pastor, com a Bíblia já aberta nas mãos.
Todos os presentes baixaram os olhos vermelhos em sinal de respeito. A Palavra de Deus sempre oferece o conforto necessário em tempos difíceis.
— Benditos sejamos nós, as pessoas de bem! — gritou um jovem. — Vamos seguir os exemplos da Bíblia e punir com a Ira de Deus todos aqueles que desafiam a nossa santa harmonia!
Ao grupo, que já era grande, foram se juntando outros personagens: a polícia fortemente armada, deputados e senadores de ilibada reputação, banqueiros imaculados, juízes cobertos pelo imparcial manto negro da Justiça, repórteres e suas câmeras prontas para registrar a limpeza que se pretendia fazer.
Quando as chamas saltaram dos olhos vermelhos, as pessoas perceberam que aquele era o sinal que tanto esperavam: o pastor fechou a sua Bíblia e a atirou contra a janela da casa. A polícia arrombou a porta e abriu caminho para as pessoas de bem. Cinco minutos depois saíram todos, exaustos e felizes, cobertos de sangue e glória, a paz cintilando nos olhos que só mesmo os puros de corpo e espírito podem ostentar.
No interior da casa jazia o corpo do artista.
3. isto não é pacu
… e o homem então, todo cagado, foi procurar o responsável pelo quadro.
— Quem pintou isso? — perguntou, a merda caindo ao chão ao mesmo tempo em que o fedor subia.
A pintura, enorme, ocupava todo o centro da galeria: um grande rolo de papel higiênico hiper-realista com uma pequena legenda no rodapé:
Isto não é pacu
— Ele pintou — falou o público, apontando para um homem que bebericava, discreto, o seu drybloodine.
Largando bosta por todo o piso de mármore italiano, o indignado se aproximou do pintor. O fedor, é claro, chegou na frente.
— Como é que o senhor se atreve a pintar tamanha mentira? Papel higiênico não é assim!
— Não é papel higiênico, senhor. É apenas um quadro.
O público já não conseguia entender se aquilo fazia parte da exibição.
— A performance mais louca que já vi!
— Divertida.
— E fedorenta também!
O pintor, entre a surpresa e a indignação, se defendeu:
— Isto não é pacu, senhor. É a minha obra-prima.
O indignado cagado se esmerdalhou ainda mais, carimbando o mármore com mais uma larga e irregular camada de bosta.
— Isso não é obra, nem prima. É apenas um insulto às sensibilidades, uma ofensa ao bom senso, um ataque estético.
O público ficou entusiasmado com a repentina confusão; selfies & flashes explodiram aqui e ali.
— O seu rolo de papel higiênico é uma fraude — continuou o cagado, mais cagado ainda. — Mas acredito que faria bom uso dele em meu banheiro. Quanto custa?
O pintor terminou o seu drybloodine e a conversa:
— Conforme se pode ler e observar, isto não é pacu.
O cagado deixou a galeria sob o riso pesado do público, plantando interrogações a cada pedaço de merda que se lhe escapava pelo rabo.
— O que ele quer dizer com isto não é pacu? — pensava o homem enquanto cagava e andava.
Claudio Parreira é escritor. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, entre outras publicações. É autor do romance Gabriel e também da coletânea de contos Delirium. Vai lançar, em breve, o romance sem noção A Lua é um Grande Queijo Suspenso no Céu, pela Editora Penalux. [Facebook]