dois poemas de Pollyanna Furtado

cena implícita

Enterro-me a cabeça sob um manto escuro,
enquanto tu proclamas o amanhecer.

A tua língua pode mais
do que legiões de olhos cerrados
atrás do algodão puído
de quartos em corta luz.

O mundo vibra com dissonâncias.
E nele, integro-me à batalha,
na fina semântica dos cristais,
contra muros estampados de ira e de musgos.

A tosca umidade
grita sutilezas no passeio público.

Seres de rocha rasgam a paisagem
como quem, num átimo,
rompe o cenário
de uma película
em negativo.

ao esmagador peso da sombra

A sombra do real,
na madrugada sonora,
tem o rumor de máquina
esmagando sonhos.

Com as pálpebras pesadas,
no entressonho,
sondo seres soterrados.

Entre a vigília e o espasmo,
saltam-me, da vibração,
máscaras que se deformam
no espanto.

O sono me envolve
e sou capaz de reconhecer
o ponto em que me lanço,
no absurdo.

Sei o momento máximo da queda
e o instante mínimo do esquecimento.

Sei que a pedra rola sobre Sísifo,
eu me integro à face maturada…

Ainda que eu esteja morta,
minhas bocas em trevas
se abrem em pleno do dia.

| os dois poemas são do livro À sombra do iluminado (Ed. 7Letras, 2017), seu lançamento será nesta sexta-feira, 13 de outubro, em Manaus — Amazonas, durante a XXXII Feira de Livro dos SESC. |

Pollyanna Furtado (1981) é paranaense radicada no Amazonas. Professora de Língua Portuguesa na rede pública de ensino e Mestra em Letras — Estudos Literários pela Universidade Federal do Amazonas. Publicou Fractais e À margem da luz (edição independente, 2007), Simetria do caos (Ed. 7Letras, 2011) e Rosa de Sombra (artesanal e versão digital, 2013) e À sombra do iluminado (Ed. 7Letras, 2017). Site: https://pollyannafurtado.wixsite.com/pollypoeta