quarto 303, de Adriana Brunstein

A primeira vez que meu pai olhou pra uma bunda de mulher eu levei um susto. Não pela bunda em si, que era ok, mas alguma coisa entre tudo que eu acreditava começou a desmoronar. Eu nem sei se esse é um assunto apropriado pra depois de uma foda, mas é que eu parei de fumar e talvez fosse até o caso dos motéis deixarem um plástico bolha no criado mudo pra gente ter o que fazer senão falar. Acho que eu vou colocar na caixa de sugestões. Você viu se tem uma? O fato é que era um casamento, eram duas pessoas acreditando que poderiam ser, sei lá, felizes. Essa mulher, a da bunda, era loira e usava um vestido cor de vinho. Não sei te dizer quantos anos ela tinha, chuto uns 30 e poucos ou até mais, porém bem disfarçados. Na verdade podia ser menos, quando a gente é criança acha todo mundo muito velho. E olhando agora pra esse espelho no teto, eu não acho que alguém ainda viraria o rosto pra olhar pra minha bunda. Então vou ficar com no máximo 30 mesmo pra ela. E ele ficou com os olhos super vidrados, sabe? Eu comecei a comer rápido pra ver se me sentia menos constrangida com aquilo, pra arriscar uma engasgada feia e alguém gritar “Tem algum médico aqui?”. Sempre tem, né? Médico é tipo o Sim da Tábua Ouija. Eu queria ter uma. Mas eu não engasguei. Eu não consegui tirar meu pai daquele êxtase. E eu nem sei se tinha esse direito, mas o que eu sabia da vida também não valia mais. Quando você me conheceu, você me falou que eu tinha um jeito estranho de andar, lembra? É que eu carrego uns troços esquisitos. Não na bolsa, na cabeça mesmo. Então eu acabo ficando meio encurvada pra não perder o equilíbrio. Sabe pombo? Dizem que eles mexem a cabeça pra frente e pra trás pra não caírem pro lado. Não acredito muito nisso, acho que é só o jeito deles mesmo, que um dia um resolveu fazer isso e os outros imitaram porque é assim que as coisas são. Uma vez uma tia me deu um beliscão no braço para eu parar de cheirar o sofá de casa depois que as visitas saíam, dizia que era coisa de gente porca. Ela morava lá em casa, mas eu não sei por que, nunca me explicaram. O engraçado é que eu não me lembro do rosto da mulher. Quando tava todo aquele alvoroço por causa do buquê da noiva, eu fingi que meu guardanapo tinha caído e entrei debaixo da mesa. Acho que eu não tenho as manhas de te contar mais nada. Na verdade nem é justo. Não tem aquele ditado de o que acontece em Las Vegas fica em Las Vegas? Devia ter um tipo para debaixo de Las Mesas também, né? Foi uma piada. Eu só queria te fazer rir mas nunca fui muito boa nisso. Daqui a pouco ligam pra falar que o prazo acabou. E eles têm um prazer todo especial em dizer que o prazo acabou, você já percebeu? Acho que eu vou falar disso também na caixa de sugestões. Você não viu mesmo se tem uma?

Adriana Brunstein é Ph.D. em física, escritora, dramaturga e roteirista, com trabalhos em várias vertentes e meios da comunicação. Ganhou o prêmio HQMIX 2008 de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Graphic Novel Prontuário 666 — Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão e foi contemplada pelo 13º Cultura Inglesa Festival com o curta-metragem Olhos de Fuligem. Publicou o romance Estado Fundamental pela Panelinha Books (2012), participa das antologias de contos Casa de Orates (Editora Mondrongo, 2016) e O Outro Lado da Notícia (@link Editora, 2016). Lança, em breve, Pancho Villa não sabia esconder cavalos, pela Editora Laranja Original. Tem textos publicados nas revistas literárias eletrônicas Mallarmargens, Germina, Diversos Afins e Escritoras Suicidas.