oito poemas de Adriane Garcia

indigesto

Café da manhã: jornal
Um copo de sangue
E um pão de mal.

um ovo trinca

Quando tudo está parado
Quando o ar vira mormaço
Quando a melancolia toma
Nos braços todos os homens
Um anjo piedoso faz
Coceguinhas numa criança

E ela ri
E algo se rompe
E eu sei que o mundo
Não acabou.

mineração

Montanhas diluídas
Diárias, de saída
Vagões ininterruptos
Numerados de sanha
E sina

Minas ficando plana
Voltando made in
China.

ganhar o céu

Vou para trás, na contramão
Eu ignoro a seta e vou
Para trás, na oposição
Desorganizo o meu destino e vou
Para trás, na direção
Contrária ao que se me ditou e vou
Para trás, na tradição
Dos que recuam pra tomar impulso
E voo.

irreversível

Sempre tarde demais eles vêm
Dão tudo de si, depois de misérias
Como se economizassem para o fim
Quando já estão velhos e fracos
Quando não é mais possível
Pedalar na primeira bicicleta.

um número

Tenho números
E uma conta alta para pagar

Sou um número
Reduzida a mais um na espécie

Sou peça, engrenagem
Na máquina, que pesada
Comprime minhas mãos

E não toco
Meu piano
Como quero.

materno

Sou mãe
Quero dizer morada
Teto pra quando a rua
Fizer-se desabada

Sou ombros
De peso e de consolo
Seguro braços trêmulos
Pra dar firmeza de colo

Sou solo
Dos teus pés criando asa
Pra cuidar do ferimento
Quando o bodoque te arrasa:

Sou casa.

ejaculação precoce

Tento me estender, é verdade
Quando assusto já foi
O poema me dá um ponto
Final e pronto, acabou.

| todos estes poemas foram publicados originalmente no livro Embrulhado para viagem, da Coleção Leve um Livro 2016 |

Adriane Garcia, de Belo Horizonte-MG, é poeta. Em 2013, venceu o Concurso Nacional de Literatura do Paraná, poesia, com Fábulas para adulto perder o sono (Confraria do Vento, 2017, segunda edição). Em 2014, publicou O nome do mundo (Armazém da Cultura) e, em 2015, Só, com peixes (Confraria do Vento). Em 2016, participou da Coleção Leve um Livro, com Embrulhado para viagem.