indigesto
Café da manhã: jornal
Um copo de sangue
E um pão de mal.
um ovo trinca
Quando tudo está parado
Quando o ar vira mormaço
Quando a melancolia toma
Nos braços todos os homens
Um anjo piedoso faz
Coceguinhas numa criança
E ela ri
E algo se rompe
E eu sei que o mundo
Não acabou.
mineração
Montanhas diluídas
Diárias, de saída
Vagões ininterruptos
Numerados de sanha
E sina
Minas ficando plana
Voltando made in
China.
ganhar o céu
Vou para trás, na contramão
Eu ignoro a seta e vou
Para trás, na oposição
Desorganizo o meu destino e vou
Para trás, na direção
Contrária ao que se me ditou e vou
Para trás, na tradição
Dos que recuam pra tomar impulso
E voo.
irreversível
Sempre tarde demais eles vêm
Dão tudo de si, depois de misérias
Como se economizassem para o fim
Quando já estão velhos e fracos
Quando não é mais possível
Pedalar na primeira bicicleta.
um número
Tenho números
E uma conta alta para pagar
Sou um número
Reduzida a mais um na espécie
Sou peça, engrenagem
Na máquina, que pesada
Comprime minhas mãos
E não toco
Meu piano
Como quero.
materno
Sou mãe
Quero dizer morada
Teto pra quando a rua
Fizer-se desabada
Sou ombros
De peso e de consolo
Seguro braços trêmulos
Pra dar firmeza de colo
Sou solo
Dos teus pés criando asa
Pra cuidar do ferimento
Quando o bodoque te arrasa:
Sou casa.
ejaculação precoce
Tento me estender, é verdade
Quando assusto já foi
O poema me dá um ponto
Final e pronto, acabou.
| todos estes poemas foram publicados originalmente no livro Embrulhado para viagem, da Coleção Leve um Livro 2016 |
Adriane Garcia, de Belo Horizonte-MG, é poeta. Em 2013, venceu o Concurso Nacional de Literatura do Paraná, poesia, com Fábulas para adulto perder o sono (Confraria do Vento, 2017, segunda edição). Em 2014, publicou O nome do mundo (Armazém da Cultura) e, em 2015, Só, com peixes (Confraria do Vento). Em 2016, participou da Coleção Leve um Livro, com Embrulhado para viagem.