gomapseumnida, poema de Tarso de Melo

(Coréia do Sul, setembro 2014)

1.

quando você sai do chão
e sabe que há tanto mar sob os pés
e não há pouso ou pausa possível
pode pensar como seria
não pousar nunca mais
na própria vida

mas você se move
a cabeça na mira (ando, ando)
e o corpo entre mosteiros
e a alma entre ponteiros
tentando escorregar
em meio a multidões
de sandália com meia
executivos bêbados
fumantes compulsivos
velhinhos recolhendo bitucas
protestos que parecem
treinos de taekwondo
crianças risonhas
velhos mal-encarados
policiais em duplas
desenhados a lápis
quase branco
pincéis, papéis

carimbos, tintas
impressos na tela veloz
dos carros que cortam
tudo — e você segue

poeta perdido num lugar
em que todas suas palavras
não servem para nada

você segue, com a língua nua
indefesa, vulnerável
soterrada sua pretensão
de saber dizer tudo
e agora o silêncio
o desencontro
o estranhamento
do outro lado do mundo
do outro lado da língua

2.

aprendi o que é cidade antípoda
você percorre exatos 180 graus da terra
ou faz um furo perfeito de um lado
a outro da terra e assim vai de Manila
a Tangará da Serra de Taipei a Formosa
de Rukua a Tombuctu de Lima a Pursat

se eu cavasse o solo preto de Jeju
sairia em Santa Vitória do Palmar
os cientistas dizem que o diâmetro da terra
é de 12742 quilômetros
e que a distância do voo de São Paulo a Jeju
é de 18539 quilômetros
mas Santa Vitória do Palmar fica
a apenas 1628 quilômetros de São Paulo

e eu abriria assim um caminho
para a língua entrar
e dizer novamente casa

| pags. 40-42 do livro Íntimo desabrigo, Dobradura Editorial e Alpharrabio Edições, 2017. |

Tarso de Melo (Santo André, 1976) é advogado e poeta. Lançou, entre outros, os livros Planos de fuga e outros poemas (Cosac Naify, 2005), Lugar algum: com uma teoria da poesia (Alpharrabio, 2007), Exames de rotina (Editora da Casa, 2008), Caderno inquieto (Dobra Editorial, 2012) e Íntimo desabrigo (Dobradura Editorial e Alpharrabio Edições, 2017).