Houve quem achasse melhor deixar tudo pra lá, era apenas uma voz dissonante, um zero à esquerda. Bastava um tiro, um acidente forjado, ou mesmo deixar por conta do tempo: a fome, os rigores do clima, uma pequena doença oportunista o levariam desta pra melhor sem que nenhum tostão dos cofres públicos fosse gasto com gente assim tão insignificante.
Por outro lado, uma vez que a contradição é a base da humanidade (ou da falta dela), havia quem pensasse diferente: o problema não era o sujeito em si, mas sim a influência que ele poderia exercer nos outros: mesmo que durasse menos que um peido, aquele seu mau exemplo poderia contaminar toda a Nação. E aquele não era, definitivamente, o risco que desejavam correr.
Chamaram então os militares, a inteligência do governo, cientistas das mais variadas áreas, padres, pastores, um pai de santo. Uma comissão, inclusive, foi formada às pressas para cuidar de assunto tão indigesto.
— Porque ele representa toda a instabilidade que combatemos há anos.
— Uma espingarda e um caminhão de lixo resolvem o problema muito bem.
— Enfia uma banana de dinamite no cu dele e explode. Vai ser lindo!
A discussão se estendeu por meses: a cada dia centenas de sugestões, desde as mais simplórias até as mais elaboradas, entulhavam a mesa do responsável pelo caso, que já havia perdido os cabelos tentando chegar a um resultado satisfatório.
— Por que vocês não lhe oferecem ajuda? Ele sofre, é uma ovelha desgarrada que precisa ser reconduzida ao rebanho.
— Ovelha o caralho! Tem ideia do perigo que ele representa?
— Um homem desses é capaz de muita coisa.
— Inclusive de nada. Já pararam pra pensar?
Esta, no fundo, era a grande questão: pensar. Todos ali pensavam, naturalmente, mas ninguém sabia ao certo qual a direção do pensamento. E o pensar, por sua própria natureza, oferecia as mais diversas possibilidades, o que deixava claro que todos ali estavam corretos e ao mesmo tempo errados. Como proceder, então?
Passada essa fase de intensas conjecturas e bolas fora, a comissão foi enfim intimada pela Administração Superior a apresentar resultados concretos.
— Façam alguma coisa, porra!
Foi o que eles disseram, não com essas palavras, mas foi.
— Sugiro passar o problema para o nosso querido diretor.
— Por que o diretor?
— Porque o diretor não é diretor por acaso. Certamente deve ser o homem mais qualificado entre nós para resolver assuntos dessa complexidade. Um diretor, afinal, é um diretor; isso exige qualificação.
— Para ser diretor não é preciso qualificação alguma, seu idiota. Basta ser o homem certo a puxar os sacos certos. O nosso, por exemplo, é bem isso: tem uma coleção de sacos emoldurados na sala de estar.
— Voltamos então à estaca zero. Precisamos definir, entre as possibilidades do pensar, a melhor delas.
— Isso vai dar o que pensar.
— Ai meu Deus!
* * *
Eu confesso: desde pequeno tenho esse péssimo hábito. Foi constrangedor quando mamãe me pegou em flagrante no banheiro:
— Quiéisso, menino!?
Eu tentei disfarçar, essas coisas são muito íntimas, mas mãe é mãe:
— Tô pensando, e daí?
Ela saiu correndo, desesperada, e dois dias depois cortou os pulsos. Papai, que é um homem prático, me expulsou de casa aos pontapés.
Desde então tenho estado aqui, na esquina da Ipiranga com a São Pedro, pensando contra o vento e contra tudo. Contra todos. E esse é o meu maior problema hoje: sei que fui descoberto, que estão à minha caça. No atual regime, pensar é perigoso demais. Pra eles. Quanto a mim, essa é a minha única defesa possível.
Como já conheço as limitações dos inimigos, simplesmente mudei a minha posição: troquei de esquina e agora ocupo a São Pedro com a Ipiranga. Uma mudança medíocre, vocês certamente pensarão, mas eu sei contra quem luto — eles jamais pensarão no que eu pensei, embora continuem me procurando justamente porque o meu maior crime é pensar.
Claudio Parreira é escritor. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, entre outras publicações. É autor, pela Editora Draco, do romance Gabriel e também da coletânea de contos Delirium, pela Editora Penalux. Facebook: Claudio Parreira.