Aquele cheiro era foda. Ela fazia uma torta de frango que queimava na parte de baixo. Toda sexta. Era religião. As pessoas são, em geral, um agridoce entre engraçadas e estranhas. Às seis, começava. Eu estava na primeira tragada da noite. Conseguia distinguir sua silhueta através da cortina florida. Era com graça. Com graça que ela se mexia no centro da cozinha. O centro do mundo.
Às oito. Era em ponto. Ele entrava a passos lentos e se jogava no sofá. Pra tomar coragem. Os anos pesam como cadáver apodrecido nas costas dos casais. Seu tórax explodia uma. Duas. Três. Pela janela, eu percebia seu dorso corpulento. Na cozinha, ela fingia. Gostava que demorasse pra aparecer. Emulava uma preocupação com a crosta. A crosta da torta. Ela sempre tava lá.
Às nove, às sextas, eles iam para o quarto. Ali, eu imaginava. Uma, duas, três tragadas. Quatro doses. A torta já esfriava na mesa de jantar e me espancava o rosto com seu cheiro. Nove e meia.
Saíam meio que entediados. Com a calça desabotoada e o vestido revelando parte das coxas pálidas. A torta se extinguia. O silêncio tomava conta daquela cozinha de uma forma arrasadora. Era fadiga. Sexta. Casamento: não terás outros deuses diante de mim. Ele era o marido. Ela, esposa. Aquilo era surreal. Um ambiente todo contorcido e desfocado por cheiro de torta e instituições.
Eu estava sozinha. Sentia-me melhor que eles.
Meia noite. Eu jogava pra dentro o último pedaço de torta. Ela trazia em um pote de plástico todo manchado de molho. Chamava-me de ogra. Ria. Contava-me que ele gozou em dois minutos e apontava, de forma sincronizada, as sobrancelhas e os olhos para o teto. Toda sexta ela vinha. Tinha o riso pesado. Penava a aparecer. Seus dedos cheiravam a alecrim e ficava até às três. Ele pode acordar, dizia. Nunca acontecia. Mas era casamento. Pra me despedir eu empurrava seus dedos pra dentro de minha boca. Era alecrim.
Um dia lhe pedi pra ficar. Não ia acontecer, ele não ia acordar e por que ficar com um brocha que é viciado em torta de frango? Eu disse. Era uma merda. Um tédio. Não me respondia e olhava através da janela, através da cortina. Direto pra cozinha. A forma, vazia, ficava em cima da mesa.
No meio do breu do quarto, dois cristais brilhavam em sua face. Era linda, afinal. Estava cansada e aquilo era a vida. Nunca me respondeu.
Não ia rolar. Estava queimando de febre. Que voltasse na semana que vem, mas com o brocha e uma torta inteira só pra mim. Ele ronca, ela disse. Soltou seu riso pesado sob mim. Era dez.
Voltou. Não sexta. Terça. Ela. Ele. Mãe e pai. Eu no centro. Cobria meu cobertor com os cristais que saltavam de seus olhos. São muito amigas, seu marido explicou para os meus pais. Era choro e pena. Eu era a terra, afinal. Faltava-me apenas dois dias e o som de seu choro pesava mais ainda. Era foda.
Eu, que pequei, enfim, jejuei, descansei do meu amor. Sob os olhos do brocha e do lado da torta. Ela não esqueceu. Meu quarto cheirava a frango e alecrim quando me extingui.
Danilo Brandão nasceu em São Paulo e mora em Londrina, interior do Paraná. É estudante de Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Tem textos publicados em sites, revistas e jornais literários.