eu ainda não tinha ido tomar banho e acabara de chegar do trabalho com cheiro de cansaço e suor de um dia todo debaixo dum poderoso sol que torrava qualquer ideia mirabolante que eu tivesse e ainda morava num quarto no fundo da casa duma velha amiga da minha, já falecida, mãe. quando cheguei deitei no gramado de trás da casa olhando para o céu com poucas estrelas, poucas estrelas firmes e brilhantes como um sonho de verão que nunca houvera sido escrito. nos meus diálogos mentais nada vinha além de cocaína e traficantes e até umas piadas de sarcasmo horrível. estava eu com os miolos cozidos. minha roupa suja e dura pesava no meu corpo e com a temperatura da noite baixando eu começava a sentir um frio tremendo de quase bater os queixos, alisava com as mãos os braços grudentos com pó de construção e suor. aquilo tudo como um pasta sobre meus pelos amarelados, tostados pelo sol e a pele vermelha como uma bandeira comunista — dizendo que a foice e o martelo estavam em minhas mãos até pouco tempo atrás. deslizei dentro do quartinho pequeno revirando minhas caixas de roupas buscando uma calça de pano fino e uma camisa qualquer pra vestir, peguei uma cueca e a toalha que estava estendida no encosto duma cadeira.
tomei banho e voltei.
a velha, que era muito próxima a minha mãe, havia-me deixado morar ali por um tempo sem pagar nada — mesmo que eu quisesse pagar —, nada me agradava em ficar ali até porque eu e ela não tínhamos qualquer ligação que não fosse minha mãe, aquilo me deixava consternado comigo mesmo. apesar de tudo, existia um pequeno e velho piano, jogado às baratas mas ainda bom, na parte de trás da casa onde eu geralmente ficava boa parte do tempo que tinha livre. há alguns meses eu havia começado a tocar as teclas do piano, apreciando cada peculiaridade de cada som, de cada nota, de cada trêmulo gesto dum maestro imaginário que eu espelhava num idoso grilhalho com problemas nas mãos e um sorriso de fadiga indizível. depois de um ou dois dias eu havia começado a fazer movimentos usando as duas mãos já, juntas, quase que simultaneamente ainda que saíssem constantemente de sintonia devido ao meu problema motor do lado esquerdo do corpo. meus lábios fremiam a cada nota correta e simultânea e nada podia dar errado quando eu estava debruçado naquele piano corroído por minha sede de música. minha sede por algo que não fosse a miséria da vida de todos, minha própria miséria que era esquecida em cada miserável nota. sentia-me como mozart, sentia-me como brahms, sentia-me como beethoven, só que vivo. eu estava vivo e podia fazer muito mais que já fazia. sim, não era muita coisa, somente dedilhava algo nas teclinhas de marfim e as cordas vibravam e eu não usava os pedais corretamente. nem sabia sequer se os pedais funcionavam, se eles existiam, pra quê eles serviam. e eu não tinha ninguém para me dizer isso.
tudo já era escuro e a velha ouvia o piano tocar erroneamente enquanto tomava seu café, a fumaça cobria toda sua frente e ela soprava aquilo, então, tomava um bom gole do café quase querendo tapar os ouvidos. mas eu continuava lento e depois rápido e rápido e rápido e mais rápido e daí lento, uma peça, uma peça digna dos grandes palcos, diriam para mim VOCÊ ERRA TUDO, NÃO SABE TOCAR e eu diria OLHE O NOME DA PEÇA e apontaria para o cartaz bem acima da minha cabeça e do meu piano que não era meu e todos leriam “sonata para piano desafinado no. 29”, menearia com a cabeça, tudo isso com os dedos ágeis, lentamente e gradativamente ou SUBTAMENTE rápidos. balbuciando minhas tristezas. e eu prometeria não me irritar com as tossidas dos velhos grisalhos da platéia. lá estava eu, cansado depois dum dia de serviço brabo, tocando com os dedos duros as teclas do pianos com o som agudo saindo latejando na minha mente a ideia de ser um pianista. o que me fez lembrar de escritores. o que me fez lembrar de livros. um pianista, eu tinha belas mãos, firmes e grandes, os dedos esguios e longos, como que feitos para deslizar pela pele duma mulher.
fenecendo com o piano meus dias se passaram e tive que arrumar um lugar fora da casa da velha pra viver. fiz isso e acabei por ficar longe do piano. percebia que minhas mãos sentiam total falta de algo como aquele piano para tocar, já que eu não tinha uma mulher para tocá-la eu havia começado a escrever coisas à mão. caneta e papel. mas nada superara as teclas lisas do piano. lisas e sem cor, velhas, como um familiar, era como se o piano estivesse morto e meu sentimento de luto se espandisse por tudo e sequer eu tinha como vê-lo descer no caixão até a sepultura vedada por concreto, com terra e grama por cima e somente uma fotinha na losa ou somente algumas notas talhadas ou pintadas ou as duas coisas.
tempos se passaram, acho que um ano e algum tempo mais. escutei o telefone tocar, estava a uns seis metros do chão em cima dum andaime que oscilava conforme eu me postava sobre ele. o dia era nublado e as cores pareciam todas mortas assim como minhas ideias que não vinham, nada vingava do meu trabalho, nenhum tempo fazia com que meus músculos se desgastassem e eu parecia mais vivo e morto que qualquer pessoa viva ou morta. empulerei-me nos pedaços de ferro dançantes e me jogando de um proutro cheguei ao chão e atendi o telefone.
“pronto!?”
“sr. grol?”
“ele mesmo”
“com pesar comunicamos que sua tia acaba de falecer”
“ana??”
“sim”
“onde ela está?”
“ligamos pra funerária e eles levarão ela, você pode ir até lá pra saber mais”
“tudo bem, mas me diga algo, quem é você?”
desligou.
depois disso tudo se foi como uma folha seca no vento de outono no parque que eu sempre costumava ir para ouvir as mais indignas e silenciosas mensagens minhas para mim mesmo. costumava lá ter as ideias para sons, mesmo sem o piano eu ainda gravava na mente o que cada tecla fazia e depois de um tempo analisando o que ocorria com som quando acionava um dos pedais e depois o outro descobri por fim suas utilidades e assim o som saía como tinha que sair, obviamente que eu não havia parado de errar as notas mas não era uma coisa que não percebia, pelo contrário, depois dum belo tempo passei a fazê-las por gosto. por puro sarcasmo com as coisas limitadas. assim mesmo estava sem o piano para praticar e quando tinha a oportunidade ia até o conservatório e roubava o pouco que podia namorar um piano o qual não me pertencia nem emocionalmente. as coisas eram lindas porém tristes. era como perder o amor da minha vida pelas minhas próprias mãos amadoras.
velei e enterrei titia. no testamento não me deixou nada. sequer o piano corroído e ainda, inutilizado. minhas digitais inda estavam nele pois percebia-se de longe que nunca fora limpado depois que sumi de lá. vi ele pela última vez quando velei-a. passamos a noite em claro, e sozinhos boa parte do tempo. as pessoas abandonaram-a e já que estava morta resolvi tocar um pouco de piano pra ela. comecei a oscilar e depois me lembrei dum pedacinho da primeira sonata de brahms e tentei reproduzí-la. demorei algumas horas e não tinha as partituras, ia somente tateando os sons, as notas me vinham à mente, meus dedos firmes e leves tocavam a parte mais melancólica, lenta, quase sem precisar agilidade, somente ritmo, somente o vento soprando enquanto a lua deitava no céu e se acabava no nascer do sol.
na hora do enterro as pessoas chegavam e íamos saindo todos para enterrá-la. os toques fúnebres dos trompetes diziam que eu também morria.
por mais que não tivesse ficado com o piano fui o último a me despedir. e fiquei ainda olhando pra losa tentando entender qualquer coisa que não me foi permitido. quando eu saí do cemiterio o tempo se abriu como uma mochila de drogas e vi que se lamentar podia ser a coisa mais plausível que me sobrara, porém chorar seria desprezível até pra mim. somente fui embora andando errante, como uma nota ou uma troca de teclas que não aprendi.
* * *
numa noite fria e cruel em que eu fumava meu cigarro e nada mais poderia dar certo bateram à minha porta com violência. por vezes eu escutava batidas mas sempre vinham da minha mente que sempre necessitava achar que alguém procuraria-me para dizer qualquer coisa. meus parentes morriam como um efeito dominó e eu não estava distante do fim, minhas relações fora isso eram tão escassas quanto pessoas vivas. e não preciso nem falar das mulheres. senti o coração dar uma acelerada e daí, então, parar um pouco e voltar ao normal, continuei vivo e sem parada cardíaca. abri a porta e olhei pelo fresto. abri totalmente e deixei entrar. só tinha vindo me entregar um papel. saiu porta afora e fiquei ali encarando aquele papel de carta dobrado, esperei a poeira baixar e abri. uma letra horrível, foi difícil decifrar. então, li. dizia sobre os bens de minha tia, os quais tinham sido doados todos, falava dos quadros e dos instrumentos que tinha. não dizia sobre nada relacionado ao piano pois os instrumentos estavam listados. acabei por nem reparar na cara de quem veio me entregar e esqueci disso por completo. bom, não mudava muita coisa aquilo.
acabei caindo na cama e apagando.
logo cedo batiam à porta com violência novamente. levantei cambaleando e abri a porta escancarando-a, estava somente de cueca e dois caras seguravam um grande piano velho contra o chão. eu via que não era o meu. não era o meu piano velho. que também nem era meu. eles rapidamente jogaram o piano pra dentro e sumiram. assim mesmo, rápido mesmo, como meus dedos. fechei a porta e olhei praquilo.
minhas costas se eriçaram. sentei-me de cuecas num banquinho perfeitamente feito praquele movimento. toquei a mesma sonata de brahms. meu cigarro dançava na boca. a fumaça preenchia tudo à minha frente. os toques pareciam vindos duma casa de madeira.
Anthony Felipe nasceu em Ponta Grossa-PR em 12 de agosto de 1999. Começou a escrever — conscientemente — poemas em 2014, mas, com o tempo, contos e crônicas apareceram subitamente. Um bocado de seus escritos podem ser encontrados em www.carvedinit.blogspot.com.