a mordida do cordeiro, poema de Leopoldo Comitti

1.
Sinto a mordida,
não do lobo,
mas do cordeiro.

Manso e cordato,
abre a boca pequena
como quem afaga,
com os dentes frágeis
e ligeiro recato,
a carne que sangra,
crua.

2.
O pecado não nasce da luta
cativante entre Deus e o Diabo;
mas de longa criatividade
da firme e repetida disputa.

Não há fábula no cotidiano:
horas devoram minutos
numa carnificina eterna.

3.
Lobo e cordeiro andam juntos
no talho aberto da multidão
perene. Anjos! Eis os Demônios,
no avesso dos tempos anônimos
e na pele que sempre muda.

De lã se faz o pelo duro
e nos endurece no esquecido
silêncio da ferida aberta.

Fingimos mal, e o mal nos prende
na voz petrificada sob os muros
respingados de sangue impuro.

Da janela escancarada, um animal
nos espreita, sequioso do bote exato
no momento certo. Espera, e ainda
espera atento. Enfim nos rasga,

silencioso.

Leopoldo Comitti é professor de Literatura Comparada da UFOP, aposentado. É contista, romancista e, preferencialmente, poeta. Publicou,dentre outros, A mordida do cordeiro, O Centro do Círculo (poesia) e tem, no prelo, o romance Natureza Morta (romance) e Mosaico Absurdo (poesia).