um outro clichê, de Tamiris Volcean

As roupas saíam sempre quentes da secadora, como os abraços dados ao final do dia. O calor chegava às mãos em um encontro de carne e alma. Cheiro de roupa limpa impregnado com a essência da noite anterior. Postas uma a uma em cabides organizados simetricamente no armário, as camisetas, quase sempre pretas, iam esfriando, deslizando e desfazendo as dobras. Uma delas, entretanto, continuava amassada. Pronta para acomodar cada costura torta no corpo de um segundo eu.

A camiseta, com a gola já surrada pelo tempo, parecia ter sido moldada no formato dela. Vestia fácil, como água de rio em correnteza. Era um santuário. Quando dentro, ela sentia-se completamente envolta por ele. Abraço permanente que só findava ao amanhecer.

Fazia parte de um ritual de pertencimento. Amedrontava-a dividir espaços. Sua escova escondia-se na primeira gaveta. Não queria ocupar um lugar que não era seu. A camiseta era a fuga do medo de tornar par os objetos de um só.

Aquele pedaço de pano verde desbotado não era dela. Era dele. Presente dele para ela.

Às cinco da manhã fazia meio-dia. Um tempo além do que ela podia segurar. Ela não sabia ser. Não conhecia a si própria para se entregar ao som de Last Kiss. Era feito pássaro engaiolado em seus medos. Cobria-se de vergonha ao pensar em liberar as asas e dançar junto a ele.

Aquele sotaque manso permeou o peito antes de se apresentar aos ouvidos. Ela odiava bonés e, ainda assim, pareceu-lhe uma boa ideia explorar o que vinha debaixo daquela aba que vira pela primeira vez. Às cinco da tarde fazia meia-noite em Paris e ela não sabia lidar com a escuridão.

Causou-lhe espanto quando, de repente, encontrava-se ali naquele mirante, que custaram a chegar. Deitada na grama, olhavam as luzes acesas dos prédios que circundavam a cidade e, por horas, brincaram de imaginar a vida das pessoas que habitavam cada quadrado de concreto iluminado. Arriscaram palpites para quebrar a timidez. Se soubesse lidar com a escuridão dos olhos dele, com certeza ela os intimidaria com as mais belas histórias que construíra em sua mente. Preferiu ficar no trivial. Ela tinha 18 anos e muita coisa para descobrir.

Naquele tempo, os dias corriam lentos. Quinta-feira era sagrada. Dia de encontrar um ao outro. De quinta em quinta, ele foi ficando. Tornou-se o primeiro e despertou-lhe a curiosidade de ser mulher. Segurou-lhe as mãos e deu-lhe vida. Ela, em troca, insegurança.

Colocou-a dentro do carro, trocou o CD e mexeu no volume com movimentos só seus. Ele tinha um jeito especial de controlar o som. Seguiram sem rumo até a última faixa do álbum. Estacionaram no centro de uma cidadela vizinha. Às duas da manhã fazia um horário qualquer. Não tivera tempo de checar o relógio. A praça central estava vazia. Ele a pegou no colo, caminhando até uma escadaria de pedras gastas impulsionou o voo dela. O primeiro. O gosto da liberdade em forma de sopro da madrugada.

Era solstício de verão, o sol teimava em arder e ela não tirou o casaco. A urgência de sentir o calor que emanava da pele dele a fazia suar. O fluido destilado por seus poros escorria pelas têmporas. Hesitou e permaneceu agasalhada. Não se sabe se por medo ou precaução das queimaduras podiam vir a arder.

O dia levou certo tempo para chegar ao fim e o sol sobre o trópico de Capricórnio iluminou aquele encontro por doze meses e um punhado de semanas. Chegou o equinócio e ela, com olhos constantemente turvos d’água, ainda tropeçava pelos caminhos que a levariam ao encontro de si própria. Às quatro da manhã o relógio parou. Dia e noite com a mesma duração. Dançaram a última música nas primeiras horas. Ela colocou seus pés sobre os dele e, suavemente, subiu e deixou que aquele som que ele escreveu para ela guiasse seus passos. Ela foi a segunda pessoa do mundo a ouvir a música que era sua. Rodopiaram no centro do quarto. Mal sabiam que o solstício de inverno, com sua frente fria, se aproximava. Ao final daquele dia, desataram o laço. Ele a queria de corpo e alma, mas ela nunca tinha vislumbrado nada além do que está refletido no espelho. Não podia oferecer o que desconhecia.

A verdade é que ela não desejava estar ali. Não naquele momento. Queria partir, conquistar um sonho ainda não sonhado. Impulsionada pelo o que nunca existiu, tentava conter sua coragem em um baú de madeira aos pés da cama. Aquela caixa de madeira maciça, abarrotada de histórias antigas, não tinha espaço para trancafiar tamanha energia. O trinco estourou e feito agulha entrou em seus ouvidos. Perdera o controle. Suas mãos não eram fortes o bastante para conter o destino. Ela ainda não sabia disso.

Deitada sobre o chão de ardósia fria, suplicava pela presença. Não entendia de onde é que vinha aquele tremor. Era do lado de fora ou de dentro dela? Prestes a explodir, juntou tudo o que era dele em uma caixa de papelão. Roupa de dormir, livros e DVDs. Naquela época, costumava-se ir a locadoras. Tinham esquecido de devolver um exemplar. O último filme que assistiram juntos.

Aquele lugar não fazia sentido sem a presença dele. Juntou a bagagem de alguns anos e partiu. Deixou para trás uma vida e incendiou-se. Num voo mimético ao de uma fênix, renasceu das cinzas e pousou no próximo destino. Ela ainda não sabia, mas era ali o local de seu segundo nascimento. O ponto exato onde descobriria a identidade do seu próprio eu.

Pouco a pouco, a distância fez a dor amenizar. Já não tinha mais tempo para culpá-lo por sua mudança. Às vezes, enfurecia-se. Pensava que, talvez, ele pudesse ter causado essa mudança propositalmente, com a pretensão de afastá-la. Noutro tempo, esquecia-se do seu timbre de voz. Forçava a memória até ouvir a voz dele chamando seu nome ao longe. Presa em um ciclo de padecimento e alívio, ela vivia.

A saudade cedeu lugar a um sentimento até então desconhecido. Ela sabia que aquela despedida era permanente. Ele foi a última visita de seu apartamento. Em meio às caixas empilhadas, amaram-se. Ela pediu para ele ficar mais uma centena de vezes. Ele negou outras mil. Recusou-se a dormir ao seu lado na noite derradeira, mas só decidiu ir embora quando o sol já despontava no horizonte. Em um último suspiro de esperança, pararam debaixo do batente da porta e olharam-se. Ela, desesperada para ficar, ele, para que ela voasse. A dobradiça chorou as lágrimas dela enquanto enchiam os pulmões do silêncio da despedida. Dele, restou apenas uma música do Pato Fu e meia dúzias de cartas de amor. Matou-o para poder seguir em frente.

A morte é sempre uma saída. Exterminação total do problema. Mas ele nunca fora um problema para ela. Experimentou, depois de alguns anos de análise, deixar de falar sobre ele no pretérito. Ele não era. Ele é. Ele vive.

Só quando admitiu que ainda pulsava aquele coração foi que tirou a venda que cobria seus olhos. O brilho da verdade fez a pupila dilatar. Ardeu. Dor que se espalhou por todo o corpo. Compreendeu, finalmente, que a ausência dele não era feita de morte, mas de vida. Ele a deixou partir por escolha, não consequência. Ele quis que ela tivesse a sua hora da estrela.

Aos 18, ela sentiu curiosidade de ser mulher, mas só tornou-se muitos anos depois. Sentiu-se mulher quando, encarando aquele lugar lá na frente, teve a certeza de que amou e foi amada. Verdadeiramente. Carnalmente. Espiritualmente. Não porque ele espalhou rosas por todo o seu caminho enquanto estiveram juntos. O que a fez ter certeza foi a ausência. Ele ausentou-se para que ela pudesse ter presença. Soltou as mãos dela para que ela corresse em direção àquele lugar lá na frente. Amor é saber onde mora a felicidade do outro. E ele sabia.

Gritando no abismo da desaparição, ela quer que ele saiba que ela, de agora em diante, é por inteiro. Corpo e alma. Hoje, ela é. Hoje, ela vive.

| crônica do livro As pessoas que matamos ao longo da vida, publicado pela Editora Reformatório, no segundo semestre de 2016 |

Site: http://aspessoas.weebly.com/

Tamiris Volcean é jornalista, mestranda em Comunicação pela Unesp, professora de Literatura e, atualmente, está de partida para Paris. Em 2016, publicou o livro As pessoas que matamos ao longo da vida, pela Editora Reformatório, que é uma coletânea de crônicas, gênero preferido da escritora.