osvaldo, de Jussara Resende

sobre humores ou fluidos | segunda semana bílis negra

Osvaldo era homem macho. Não reclamava do acaso, nem chorava morte alheia. Dizia que guardava as lágrimas para quando chegasse seu dia. Seguia a vida pelos seus passos. Mas, de todo caso, aquela não era uma morta qualquer. Era esposa de Alberto, amigo de infância, parceiro de negócios. Teria mesmo ele que fazer presença na despedida? Justo ele, que nem dela gostava, sempre pronta a dar-lhe respostas malcriadas, num ciúme doentio a julgar ser ele o ladrão dos momentos em que ausente o marido.

Mulher é bicho teimoso. Quando enfia ideia na caixa lá de cima, não tem quem a tira. Da situação, Alberto é que gostava, pois, assim, mascarada estava a constância da sua farra. Que longe do amigo tudo acontecia. Bem feito pra megera, que se achava, pensava Osvaldo, ao tempo em que se retrucava: “Mas que pensamento mais mesquinho, a esta hora, quando morta a criatura”.

Enterro é coisa chata, o defunto estirado ao centro, rezas, ladainhas e o invariável endeusamento. Nestas horas, ninguém lembra defeito. E Osvaldo, que nem sofria de esquecimento, se questionava: “vou fazer o que naquele enterro?”. Odiava obrigação. Teatro. Dissimulação. Chegou lá com a hora adiantada, no exato momento em que o Padre destacava a dor da família e, principalmente, a de Alberto, já que filhos não tinham alcançado. Pensou o amigo: “Minha avó dizia que em vaso ruim não nasce flor. Mas podia nascer diabinho, puxado no gênio da mãe”. Que horror. Bem sabia que não devia ter ido. Em horas como aquelas, alegrava-se por quase nem ter família: “Sorte a minha, que nem casei. Melhor assim a viver como Alberto, na falsidade do dia a dia, preso a um casamento sem amor, a experimentar o sexo com tantas quantas lhe ofereciam o calor”.

E eis que, cerrada a cova, floreada a lápide, choros, prantos, velas e Alberto a fingir sua dor, vem Aninha, a prima do interior, pedir licença para ler carta que a alma que se ia, escreveu ainda em vida, pedindo que fosse lida, em público e em seu último momento de luz:

Aos que aqui vieram, para minha despedida, e que cercam meu corpo, onde por certo nem mais estou, revelo: Alberto, homem bom, trabalhador, que de mim cuidou e a mim manteve-se fiel, sem nunca me dar um motivo sequer de desconfiança, merece todo meu respeito. Ainda assim, devo admitir que fraquejei ante aos encantos da carne. E agora, quando tudo é vencido e não me obrigam os segredos sociais, posso enfim confessar: dentro de mim queimava um desejo incontrolável por Osvaldo. Ah como fui ciumenta doentia, com relação a Osvaldo. Pensava eu, a todo instante, por que com Alberto passava ele tantas horas, a matar-me de inveja? Sei que minha morte terá como causa doença do corpo, espalhada pela dor que se instalou no meu coração. Ah Alberto, quantas noites sem você, distante a trabalhar, me perdi em fantasias de amor com Osvaldo, a fazer com ele as mais criativas orgias que para você não pude dar. Sim, você, homem de família, não sonhava sequer a puta que em mim habitava e nutria por ele os mais devassos desejos. Sim, era por Osvaldo, que eu gemia. Gozava quando em mim ele debruçava um simples olhar. Liberta, agora, dos desejos terrenos que me ligava a ele, seu melhor amigo, posso ser eu sua esposa, completa, ainda que em alma, mas verdadeira e celestial. Porque você, Alberto, é o homem a quem, na presença de Deus, jurei eterno amor.

Ainda bem que silêncio é marcado mesmo pela ausência de palavras, pois impossível descrever o momento. O ódio de Osvaldo por ela ganhou força: “A vaca, até morta, é porca”. Desfeita a vida dela, não contente, arruinou os negócios e a amizade de Osvaldo e Alberto. E este passou de garanhão a corno e, de súbito, assumiu posição de vítima, marido perfeito, homem de respeito.

Terminada a carta, Osvaldo secou, por dentro, todo choro que havia muito guardava e que, naquela hora, jorrou em lágrimas, molhando-o em prantos.

Chegando atrasado ao evento inesperado, colega de trabalho da agora ex-vendedora de sapatos, daqueles que se obrigam a sociais de qualquer sorte, vê, atônito, o choro descontrolado de Osvaldo, a quem consola, em forte abraço, pela viuvez.

Jussara Resende é brasiliense. Graduada em jornalismo e direito, passa os dias a escrever, quando não textos técnicos, por lazer. Ensaios, poemas, crônicas e comentários que divulga em sua página no Facebook. Escritora amadora, no exato sentido da palavra.