sobre humores ou fluidos | segunda semana bílis negra
— Vou ali matar o presidente!
Ele disse e passou a mão numa baguete comprida que estava sobre a mesa.
Uns poucos passos separavam sua casa da residência presidencial. Tão logo viu a determinação do homem, um dos seguranças se aproximou com a autoridade típica dos que cumprem com seus elevados deveres:
— Visitas não são permitidas, ainda mais com baguetes.
— Avisa o seu chefe que hoje já era — afirmou o futuro assassino.
— Por quê?
— Porque sim.
— Com isso aí?
— Não duvide jamais do poder de uma baguete!
Havia muito a se considerar naquela frase: uma baguete velha, por exemplo, endurecida pelos rigores do tempo, poderia causar, sim, graves lesões em qualquer um, principalmente se a vítima fosse o presidente. O segurança se lembrou de um caso ouvido há pouco: um conde francês de nome Ferdinand Cèline saiu para caçar e, ao apontar sua baguete em direção à cabeça de um unicórnio teve morte imediata; o tiro saiu pela culatra e a notícia saiu na mesma tarde nos principais jornais europeus, o que gerou uma consternação geral de enormes proporções e nenhuma resolução prática, como é natural em situações dessa natureza. Cabia a ele, portanto, o segurança, tomar uma medida preventiva:
— Chamem o ministro da Defesa — falou em seu rádio comunicador. — É um caso de vida ou morte. Mais de morte, provavelmente.
Como era cedo ainda, o ministro compareceu vestindo sua tradicional cueca suja. Ficou ali uns bons dez minutos avaliando a baguete e o seu portador. Dada a sua larga experiência em assuntos de defesa e ataque, uma vez que fora goleiro e centroavante do Avaí FC na sua já distante juventude, ponderou: fudeu!
— O que é mesmo que você vai fazer com isso? — perguntou ao futuro assassino.
— Matar o presidente. É sim.
O ministro, defensor habilíssimo de si mesmo, tirou o seu da reta e passou a bola para a imprensa; a imprensa, por sua vez, espetacularizou tudo e transformou a baguete num fuzil israelense e o homem, que era servente de pedreiro, em um perigoso terrorista foragido que costumava se esconder em Jurerê Internacional.
Lá pelo meio-dia, alertados pelos boletins extraordinários das TVs, em frente à residência presidencial havia uma multidão composta por todos os setores da sociedade de bem: banqueiros, garis, empregadas domésticas, ladrões de galinha, vagabundos & socialaites, deputados federais empenhados em capitalizar o fato para suas futuras campanhas, soldados, ministros da Economia & Justiça, motoristas do UBER e estudantes que entoavam mantras tibetanos de paz e purificação espiritual.
O presidente aproveitou a súbita popularidade e resolveu fazer um pronunciamento relâmpago:
— Diga ao povo que fico!
Foi a gota d’água: uma confusão generalizada explodiu coxinhas voaram para o alto mortadelas eram lançadas como bombas o segurança enfiou o nariz na cueca do ministro que nem se defendeu jornalistas usaram suas câmeras e microfones como escudos e ao fim de dez segundos todos eles se mataram com requintes de estupidez jamais verificados na história deste país.
No chão restou intacta apenas a baguete.
Claudio Parreira é escritor. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, entre outras publicações. É autor, pela Editora Draco, do romance Gabriel e também da coletânea de contos Delirium, pela Editora Penalux. Facebook: Claudio Parreira.