O TAXISTA DE CAMISETA VERDE (NA DELEGACIA):
Eu não tive culpa, a maluca de chapéu lilás apareceu do nada, ela atravessou correndo fora da faixa de pedestre, eu enfiei o pé no freio mas já era tarde.
A SENHORA DE CHAPÉU LILÁS (NO PRONTO-SOCORRO):
O trombadinha de cabeça raspada tentou roubar minha bolsa. Eu aproveitei que o sinal estava fechado para o trânsito e saí correndo. Eu estava na faixa de pedestre, sim. Mas o táxi não parou no sinal fechado.
O RAPAZ DE CABEÇA RASPADA (EMBAIXO DO VIADUTO):
Eu só estava oferecendo gominha e paçoca pra maluca de vestido vermelho, mas ela começou a gritar e saiu correndo. Não sou bobo. Também dei no pé.
O PASSAGEIRO DE ÓCULOS ESCUROS (EM CASA):
Eu estava analisando o relatório do departamento comercial. A grandalhona de cabelo azul veio pra cima da gente. O taxista arrancou, achando que era assalto, e atropelou ela.
A GAROTA DE MINISSAIA LISTRADA (NA LANCHONETE):
Quando vi o taxista de camiseta azul sair do carro e perseguir a senhora de óculos escuros e o rapaz de cabelo verde, subi logo no ônibus. A merda foi que os três também entraram no ônibus, aos gritos.
O MOTORISTA DE BRAÇOS TATUADOS (NA GARAGEM):
A garota de minissaia verde quis passar na catraca sem pagar. O cobrador de nariz redondo tentou impedir. Virou confusão, porque um senhor de camiseta preta, uma grandalhona de cabeça raspada e um rapaz de chapéu listrado começaram a gritar.
O COBRADOR DE ORELHAS REDONDAS (NA FILA DO ESTÁDIO):
Falaram que era um taxista de braços tatuados, uma senhora de camiseta estampada, um rapaz de óculos escuros e uma garota de nariz redondo, mas eu não vi direito. Estava meio bêbado, confesso. Quando acordei estava levando uns tapas até do motorista de chapéu lilás.
O DELEGADO DE MÃOS LISTRADAS (PARA O ESCREVENTE DE OLHOS ESTAMPADOS):
Pode escrever: um motorista de camiseta verde e um cobrador de vestido vermelho (irmãos siameses), abandonaram seu posto no ônibus de óculos escuros, atravessaram a avenida no sinal aberto-fechado, longe da faixa de pedestre bêbada, e atacaram uma grandalhona de braços tatuados e um rapaz de minissaia redonda (avó e neto), que procuraram refúgio num táxi azul de para-choque preto, em que viajavam, além do taxista de cabeça raspada, um senhor de mãos listradas e uma garota de olhos estampados, sua filha. O taxista de chapéu lilás, veja que coincidência, é meu sogro de orelhas passageiras e cobradoras, desaparecido há mais dez anos.
É claro que mais tarde os jornais noticiaram uma história completamente diferente.
Nelson de Oliveira é escritor e doutor em Letras pela USP, muito cedo percebeu que a literatura é o local ideal para o exercício da liberdade. Incapaz de ser um só, desdobrou-se em outros três autores: o poeta Valerio Oliveira, o desenhista Teo Adorno e o ficcionista Luiz Bras.