dois microcontos de Geraldo Lima

revolução de 30
(Trecho de uma carta encontrada nos pertences da minha vó.)

Amália,

A escrita, commo  podes ver, vai torta, diversa da de antes, não por me encontrar trêmulo no mommento por cauza da metralha, das grannadas, do transtorno que é viver essa tempestade das idéas, mas por me restar, meo amor, somente a esquerda, posto que a destra levou-a a fera da guerra. Ainda assim ella diz tudo, do amor e da saudade que trago em mim, pensando em ti agora, e se ao te rever não correr desembalado rumo aos teus braços, não será por falta de vontade, mas tão-somente por ter me levado uma das pernas a bôca faminta d’uma grannada.

(…)

* * *

demência

Do umbigo do tempo até este presente, despraticando a circunspecção da linguagem, obscurecendo-a luminosamente, discursando para o nada. Sem um interlocutor à altura da sua retórica fantástica, seu exercício de semear o incomunicável, seu despir-se de todos.

Dizem no bojo do máximo espanto: alimenta-se da carne das palavras, umas com o estranho poder de eternizá-lo. Creio nesse mistério também: o modo como o tempo o tem poupado reforça a crença. Petrificou-se. Divinizou-se. Aere perennius. Não adoece, não envelhece, não carece de ninguém. A solidão é, portanto, sua trincheira absoluta. Onde o real ergue muros, lá ele principia, sem limites.

Sempre consigo mesmo, inacessível. Desavença constante com algo que inexiste. Aparentemente.  Basta entender que, o que para ele existe, existe imenso. Olhos comuns assim, dados ao mínimo, nada penetram, nada discernem.

Dizem, no entanto, ávidos de clareza:  espíritos mandam nele.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Tem algumas obras publicadas, entre elas, Baque (conto, LGE Editora), UM (romance, LGE Editora) e Tesselário (minicontos, Selo 3×4, Editora Multifoco). Participou de algumas antologias literárias, como: Antologia do conto brasiliense (org. por Ronaldo Cagiano, Projecto Editorial, 2004), Todos os portais: realidades expandidas (antologia de contos de ficção científica org. por Nelson de Oliveira, Terracota, 2012), e Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro (org. por Anderson Fonseca e Mariel Reis, Oito e Meio Editora, 2013). Tem textos publicados em jornais, revistas impressas e revistas eletrônicas. É autor do roteiro do longa O colar de Coralina — direção de Reginaldo Gontijo. E-mail: gera.lima@brturbo.com.br