o cu não é humano, de André Balbo

sobre humores ou fluidos | primeira semana bílis negra

Refere Hamlet a Horácio haver mais coisas no céu e na terra do que sonha a (sua) filosofia.

Críticos literários, filósofos, psicanalistas, teólogos, acadêmicos e esotéricos de toda espécie por séculos botaram-se a tudo, gastaram seu latim para entrever na célebre passagem shakespeariana um mar de angústias de perquirições humanas e espirituais das mais abstrusas, quando, em verdade, aquilo a que se referia o diretor cênico e casualmente príncipe dinamarquês não era nada disso, senão, pura e simplesmente, o cu.

Segundo a Clinical Enciclopedia of Proctology, o ânus é o orifício final do intestino grosso — conceito que pode ter levado a ciência e o prosaísmo a embaraços teóricos. O comentário do Dr. Harry Townled no artigo “Anus: a complete immersion” (Martinnopolis, 1971), presente na Enciclopedia, indica que, em razão de ser o cu prerrogativa final, fim do sistema digestório e fim de e em si mesmo, sobre si atuam influxos bioepistemológicos universais, o que se traduziu, do ponto de vista linguístico, em uma correspondência sígnica plúrima, multifacetada, sendo certo haver, em todas as línguas conhecidas, uma palavra ou expressão a ele — o cu — correspondente para cada uma das 23 letras do alfabeto latino original. Sobrelevam-se algumas em português:

Aro 13. Brioco. Carió. Digníssimo. Entrada USB. Fandango. Girassol. Holofote. Intencionado. Junta-mosca. Lado B. Mialheiro. Nadeguete. Olho-cego. Preguiado. Quadrado redondo sem tela. Rego. Soprador. Toba. Urna. Vesúvio. Xilindró. Zingaleta.

Contudo, a asserção do Dr. Townled e seu curioso rol igualmente permitiram uma sorte de equívocos conceituais. Para esmiuçar o problema, ao cabo é preciso definir o que é o cu.

O cu é o nada, o vazio. Não se confunde ele, o cu, com seu entorno, a parede do reto; é ele, o cu, justamente o espaço vazio da extremidade retal. Disso decorre, portanto, que o cu é o que não é — isto é, o que é não sendo; o cu é senda, e equivale ao não-ser. Parmênides de Eleia, um dos primeiros cuzões da história da filosofia, inconscientemente desvendou o segredo do cu; ainda que “desvendar” — ou mesmo as equivalentes “desvelar”, “descobrir” e outras — sejam imprecisas, eis que não se venda, vela ou cobre aquilo que não é. O que não é, por definição, não existe, e portanto não pode ser passivo daquilo que é (desvendamento, desvelamento e descoberta são). Se para Heidegger a linguagem é a casa do ser, sensato inferir que a linguagem, portanto, não é a casa do não-ser; sensato inferir, ainda, que, se o cu tem casa, esta é a não-linguagem. Se o cu tem casa, portanto, trata-se de uma casa evacuada, um asilo solitário onde não vigoram os princípios que regem o mundo da linguagem, que é a casa do ser. Sensato inferir, portanto, que o cu não é linear; não porque seja redondo, como quer fazer crer a filosofia barata — o cu não é linear do ponto de vista lógico-matemático. Daí que mandar o outro tomar no cu é equivalente a dizer vá viver com suas regras próprias lá na casa do caralho, que alguns pensam ser o cu. Ledo engano. O chamado prazer anal, ao contrário do que reza o juízo comum, não incumbe ao cu, mas às terminações nervosas do reto que são, isto é, que existem, ao contrário do cu. E em falar em expressões, habitual ouvir dizer que determinado lugar é o cu do mundo — equivalente a dizer, metaforicamente, que tal lugar é mais longe que Interlagos, de modo que a ele é impossível se chegar. Portanto, tal lugar não existiria — conferir o artigo “Un viaggio per Brasile: ma vaffanculo, l’Acre veramente esiste?”, de Italo Calvino.

Ora, e faz algo o cu, ou, em não sendo, apenas senda, nada faz? Não faz, rigorosamente, mas serve — não o cu, propriamente, que não é, mas aquilo que cotidianamente se diz e se pensa ser o cu — a uma política biológica utilitária: é através do cu que sucedem o peido e a merda. O peido, como se sabe, foi a última tentativa da natureza de fazer com que o cu falasse. Afinal, é bem assim: o peido é a fala do cu, uma fala própria, individual, inexistente na linguagem do mundo que existe — o peido é uma não-linguagem. A merda, por seu turno, é privilégio final da alimentação humana, cuja circunstância de ser expelida passando exatamente pelo cu não é casual: para que uma coisa que era parte de um ser que é deixe de ser, é preciso que tenha de si sua presença retirada, o que se dá a partir de uma transitória viagem pelo mundo do nada, vale dizer, pela casa do não-ser: a casa do cu, crivo quimérico que retira o ser da linguagem, tornando-o, assim, não-ser. E daí dizer ao outro que é uma merda de pessoa é o mesmo que dizer que não vale nada, que é mais que insignificante, é inexistente para o mundo daqueles que são. Portanto, não resta dúvida: a ideia de cu é inconcebível. Ergo, o cu não é humano.

| esta peça foi escrita à razão da primeira e da segunda teses de Piglia, que em janeiro deste ano foi se juntar ao cego bibliotecário na inconcebível Babel |

André Balbo nasceu em São Paulo em 1991. Autor do livro de contos Estórias autênticas — importunâncias do engenho alheio (Patuá, 2017). É conselheiro editorial e colunista da revista Lavoura. Já foi trainee da Folha de S.Paulo, editor-chefe e colunista do Arcadas, jornal da Faculdade de Direito da USP, na qual acidentalmente está concluindo a graduação.