uma mulher chamada forte, de Julianne Veiga

Maria e de resto quase toda gente da cidade vivia pobre, uma pobreza gerada por prolongado período de carestia e falta de oportunidade. Gente interiorana antiga, correta, trabalhadeira e temente a Deus. Tipo de gente em desuso. Maria não era diferente. De hábitos simples, como bem lhe impunha sua condição de vida, dividia o dia, que começava antes do amanhecer, entre o trabalho que se estendia em variadas atividades e suas orações. Antes mesmo de sair da cama, entregava a si e ao marido a Deus. Pedia ao Senhor que dela se apiedasse, lhe desse força e saúde para o trabalho e que endireitasse o marido, com quem estava casada há anos, embora dele nada mais esperasse de positivo. À noite, deitada para dormir, rezava o terço. Ia à missa das seis da matina, sempre que celebrada.

Moravam ela e o marido na penúltima casa da rua que segue à direita depois da praça do mercado. Não tinham filhos — nem pra isto prestou o infeliz, era esse o mais sentido dos seus lamentos.

Maria cuidava de tudo. Arrumava a casa, lavava, passava, cozinhava, fazia sabão, costurava, remendava as roupas usadas que vez por outra ganhavam. No quintal, grande, com saída para um beco, tinha horta, mandioca, café e árvores frutíferas. Plantava uns poucos pés de milho, abóbora e melancia na estação das chuvas. Criava galinhas e porcos. Em meio a tudo, cuidadosamente, cultivava roseiras, não exatamente porque gostasse de flores, mas para vendê-las. Enfim, o quintal se constituia em parte importante de sua escassa fonte de subsistência.

Além dos afazeres domésticos, lavava roupa para fora. Encerrada a lida no quintal e antecipado o preparo do almoço, no início da manhã, buscava a trouxa de roupa alheia que deveria lavar no dia. Cada casa um sistema. Em cada casa um tipo diferente de tratamento lhe era dispensado, nem sempre desrespeitoso, mas sempre distante. Sabendo-se não integrante, mantinha-se discreta e calada. Aflita com a demora que lhe consumia a manhã, aguardava a feitura do rol das peças que levaria consigo. Agradecido o café oferecido e tomado com gosto, seguia direto para a beira do córrego que corria numa baixada adiante de sua casa. Lá, desfeita a trouxa no chão, separava as peças por grupos de cor e tamanho. Começava. Ensaboava. Quarava na pedra. Alvejava. Batia. Esfregava. Enxaguava. Torcia. Terminado, esperava deitada que escorresse e secasse um pouco tanto pano encharcado para alívio do peso a ser levado para casa na cabeça sobre uma rodilha de pano. Deitada, olhava o céu com olhos vagos, aproveitando bem aquele único momento em que, parada, podia descansar. Teve vez que cochilou. Mais tarde, com ferro de brasa, passava a roupa que havia lavado no dia anterior e que em seguida seria entregue aos donos. Não raro, voltava para casa passado o Angelus.

Em meio a labuta, a mulher se ressentia, pensando no marido que pouco ou nada contribuía. No entanto, embora ela não conseguisse entender, ele fazia o que podia. Tinha coragem e disposição, não tinha na cidade, pobre como sua gente, era trabalho fixo para homens como ele, crescido na roça sem ofício outro. Na verdade, ele nada sabia fazer, mas por orgulho ou para constar, saía cedo para a rua todos os dias. Podia ser que conseguisse um quintal para limpar, alguma árvore para podar ou outra tarefa miúda da mesma natureza. No geral, perambulava pelo mercado na esperança de ser contratado para carga ou descarga, mudança ou qualquer serviço que lhe rendesse uns trocados. Trabalhar em casa nos afazeres domésticos não, era muito para ele, isso não faria, não era coisa para homem. Guardava firme a convicção que homem não executa trabalho de mulher, de quem deve receber das mãos o prato feito, a roupa lavada e passada. Poderia, quando muito, buscar lenha nos arredores da cidade.

Era justamente esse tipo de atitude que Maria não mais suportava no marido e que fizera com que ela passasse a vê-lo como um inútil incorrigível. Quando se casaram, ela muito nova, cheia de ilusões e acreditando nas ideias que lhe foram incutidas pela mãe e o meio, achava mesmo que tinha obrigações a cumprir, servir e agradar o marido a principal delas. Porém, o tempo e as dificuldades cotidianas que enfrentava sozinha foram alterando sua percepção sobre si mesma e sobre a vida, foram lhe embaçando a visão e forjando a mulher endurecida que ela passou a ser. Mal tolerava o marido. Se ao menos tivessem tido filhos, mas nem para isso aquele infeliz prestou, repetia para si mesma.

Tudo piorou quando ele passou a beber. Ver o marido bêbado foi demais para Maria. Inútil, sem trabalho, sem dinheiro e bêbado? Bêbado, não. Maria perdeu o controle. Já da primeira vez, assim que o homem entrou em casa cambaleante ela lhe arrancou o cinto e bateu forte nele. Ele, no susto, mesmo bêbado, lembrando-se de salvaguardar sua posição de macho perante a vizinhança que a tudo podia ouvir, a cada lambada recebida gritava: “toma, mulher, vê se aprende”; “endireita, danada”; “eu te avisei, vadia!” e por aí seguia até que a mulher acabasse de surrá-lo. Ele não parou mais de beber nem de se defender aos gritos. Maria, por fim, precavida, deixou o cinto dependurado atrás da porta da rua pronto para o uso. De certa forma, encontraram distração. Nunca se separaram.

Julianne Veiga tem 59 anos, é de Goiás, uma antiga e histórica cidade do interior do estado de Goiás. Casada, três filhos, três netas.