três poemas de Gabriela Silva

o caçador

Sem sobressaltos
o caçador espreita,
sente a selva.

Conhece
a terra sob as folhas,
os troncos das velhas árvores.

A mansidão
do verde úmido,
o chão tenro.

Sabe
que o coração do alvo
bate despreocupado.

Ouve sua respiração,
observa seu corpo
esguio, leve, único.

Sabe- lhe o cheiro
e o momento
de ser presa.

Estica os músculos.
Ajeita o braço.
E lança sobre o outro,

A velocidade do tiro,
a ferocidade da fome,
a certeza da morte.

É uma tarde de primavera.
É o sol entre as folhagens,
sobre o vermelho.

Vestígio da fera,
anúncio do caçador,
sempre tão atento.

Ao que a vida lhe oferece,
dádiva de carne,
desejo de eternidade.

as nuvens

Quase como um enigma
as nuvens cobrem o céu
sobre o azul desbotado
do fim do dia.

Irão embora mansamente
como chegaram.
Silenciosas
velando a cidade.

Separarão as estrelas
dos namorados ansiosos,
cortinas do negro espaço
entre a noite e a aurora.

Amanhã refeitas em água e vento
serão viajantes sem destino.
Nos cobrirão os olhos
para anunciar nossos sonhos.

a garganta do sonho

Até a mesa da cozinha
são dez passos.
Contei-os todos.
Cada dia,
antes do café da manhã.

O Sonho
Esperava-me sentado.
Iluminado pela solar
poeira das coisas,
recém-despertas.

Entre a faca serrilhada
e a garganta do sonho
são dez segundos.
Contei-os todos
para me encorajar.

Cortei o pão,
enchi a xícara de café
e olhei para o Sonho,
latejante,
vivo.

Servi-me de manteiga e mel,
senti-me tomar
pelo desespero da fome.
Abstrata e imprudente
estiquei a mão.

Verti o sangue do Sonho
sobre a mesa.
Sacrifício,
para que os deuses
me libertassem de mim mesma.

Gabriela Silva nasceu em São Paulo, 1978. Vive em Porto Alegre, RS. É doutora em Teoria da Literatura e trabalha com Literatura Portuguesa. Também é professora de Criação Poética na Escrita Criativa Online, Portugal. Em 2015 publicou pela Editora Patuá, Ainda é céu, livro de poemas. É colaboradora do Jornal Rascunho.