o caçador
Sem sobressaltos
o caçador espreita,
sente a selva.
Conhece
a terra sob as folhas,
os troncos das velhas árvores.
A mansidão
do verde úmido,
o chão tenro.
Sabe
que o coração do alvo
bate despreocupado.
Ouve sua respiração,
observa seu corpo
esguio, leve, único.
Sabe- lhe o cheiro
e o momento
de ser presa.
Estica os músculos.
Ajeita o braço.
E lança sobre o outro,
A velocidade do tiro,
a ferocidade da fome,
a certeza da morte.
É uma tarde de primavera.
É o sol entre as folhagens,
sobre o vermelho.
Vestígio da fera,
anúncio do caçador,
sempre tão atento.
Ao que a vida lhe oferece,
dádiva de carne,
desejo de eternidade.
as nuvens
Quase como um enigma
as nuvens cobrem o céu
sobre o azul desbotado
do fim do dia.
Irão embora mansamente
como chegaram.
Silenciosas
velando a cidade.
Separarão as estrelas
dos namorados ansiosos,
cortinas do negro espaço
entre a noite e a aurora.
Amanhã refeitas em água e vento
serão viajantes sem destino.
Nos cobrirão os olhos
para anunciar nossos sonhos.
a garganta do sonho
Até a mesa da cozinha
são dez passos.
Contei-os todos.
Cada dia,
antes do café da manhã.
O Sonho
Esperava-me sentado.
Iluminado pela solar
poeira das coisas,
recém-despertas.
Entre a faca serrilhada
e a garganta do sonho
são dez segundos.
Contei-os todos
para me encorajar.
Cortei o pão,
enchi a xícara de café
e olhei para o Sonho,
latejante,
vivo.
Servi-me de manteiga e mel,
senti-me tomar
pelo desespero da fome.
Abstrata e imprudente
estiquei a mão.
Verti o sangue do Sonho
sobre a mesa.
Sacrifício,
para que os deuses
me libertassem de mim mesma.
Gabriela Silva nasceu em São Paulo, 1978. Vive em Porto Alegre, RS. É doutora em Teoria da Literatura e trabalha com Literatura Portuguesa. Também é professora de Criação Poética na Escrita Criativa Online, Portugal. Em 2015 publicou pela Editora Patuá, Ainda é céu, livro de poemas. É colaboradora do Jornal Rascunho.