I
tudo rasgado
pequenos papéis
de fotografias cartas
cupom fiscal daquela
sopa de feijão em salvador
peito útero passagens
aéreas certidão tudo
partido em pedaços
de ordem inumerável
no chão confetes
no corpo lençol e
espinho entranham
os grãos de areia nos olhos
do que fora tua pele
pincelada por Van Gogh
e nada se varre nada
poeira estelar sem luz
tudo um engasgo
entalado na garganta.
e depois engolir
o grito seco duro
de se saber despatriada
proibida de conjecturas
de futuro de coração.
e no entanto insisto
também: como aqueles que amam.
II
hoje depois de ler o horóscopo diário
constatei que você tinha razão sobre
a influência dos astros
não mais que maré e lua cheia não mais
o forno ainda está sujo de peixe
há escamas por toda a pia
o baralho o anzol os pés sangrentos
e tudo que prateou no ar
você também tinha razão
sobre os manzuás
sobre a areia
sobre a canoa
sobre os defeitos
e a textura das cores
era pra ser canção e não poema
como esta carta e não poema
como esta vida e não poema
mas meus olhos
já secos tardios
meus olhos
de teimosia
insistentes
deixam escapar
essa coisa às mãos
III
diria
mas antes do nome
os dedos desviam e
atravessam este corpo que poderia ser
com o teu:
um só
campo aberto
cavalo e cavalgada
cavalo e cavalgada
até que dos lábios
um sussurro trêmulo
dissesse:
este cometa demora muito tempo para completar uma volta ao sol
anos
o suficiente para
cabelos brancos
se confundirem nos
pentes da casa
entre pelos ralos
pernas entrelaçadas
o mesmo gosto
o mesmo líquido
a boca insaciável
a dizer
um verso
um só:
esse eco vagando pela areia da praia é bem maior no deserto
a língua trêmula
buscando escape
para isto que é mar
e que não descansa
um verso
um só:
Sara Síntique é graduada em Letras Português-Francês e mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Nasceu em Iguatu (CE), em 1990, e reside em Fortaleza desde 2001. Autora do livro de poesia Corpo Nulo (Editora Substânsia, 2015); também é atriz e performer.