poema s/título, de André Giusti

Você acordou cansado
e levantar já parece
a mais dura tarefa do dia:
o corpo pesa mais que um
velho hipopótamo.
Durante a madrugada,
uma alquimia corrompida
substituiu
músculos ossos nervos
toda a carne a cinquentenária
por concreto areia brita
e vergalhões enferrujados,
aqueles, transmissores de tétano.
O corpo pesa,
e dói tanto a espinha
que no meio dela
é como se houvesse brotado
uma hérnia de disco
em forma tamanho e peso
de um piano de calda.
Se pudesse, fugiria,
mas a exemplo de Minas
do poeta consagrado,
seu Rio de Janeiro não existe mais:
sucumbiu à imoralidade de seus palácios.
Com o que lhe resta de crença,
você ora ora ora
e chora chora chora.
Ao final, exercida a sobra de fé,
ressecadas as lágrimas vencidas,
o céu lhe responde
em forma de certeza íntima
renovada pelo exercício do choro:
escrever é o que resta,
posto que a poesia
é a única das forças
que ainda não lhe arrancaram.
Escrever escrever escrever,
mesmo que sejam cartas
ao primeiro ministro da Namíbia,
mensagens de reclamação ao serviço de entrega,
poemas de amor a amadas inventadas,
que dramaticamente nos traem
apenas por vingança.
Porque escrever é o jeito
que você encontrou
de ter esperança.

André Giusti é carioca, nasceu em maio de 1968. Mora em Brasília desde 1998. É autor, entre outros, de A solidão do livro emprestado e A liberdade é amarela e conversível (contos, Editora 7Letras), e de Os filmes em que morremos de amor (poesia, lançado recentemente pela Editora Patuá). André Giusti também é jornalista e mantém o site/blog www.andregiusti.com.br