Não sei ao certo quantos são; talvez quatro ou cinco. Meus olhos teimam em ficar embaçados, talvez receosos de que isso seja verdadeiro. Ou talvez eles prefiram ocultar o que não são capazes de enfrentar. São quatro, agora está claro. Papai e mamãe de um lado, Marta e Ricardo do outro. Os oito olhos como se fossem facas apontadas para mim. O ambiente, mais escuro que nas noites anteriores, ostenta alguns enfeites: bexigas roxas à porta e uma fita avermelhada que, com aparente desprezo, cruza a parede da esquerda. O quarto está feito uma moça pálida que se maquia pela primeira vez. Ao lado da cadeira de rodas, um bolo redondo com velas acesas ao centro. A pilha de embrulhos brilhantes ao pé da cama traz à tona os natais da minha infância: papai vestido de vermelho com barba postiça e sorriso autêntico, pondo os presentes sob o pinheiro. Depois do monte harmonicamente construído, ele me pegava no colo e me perguntava se eu tinha sido uma boa menina durante o ano. Rapidamente, eu balançava a cabeça para cima e para baixo e ele me colocava na pilha colorida. Aqui, os embrulhos não passam de um espectro da alegria; um exemplo de que a boa vontade tem o poder de ofuscar o bom senso.
[Parabéns pra você, nesta data querida.] Seis mãos se autoflagelam para darem ritmo aos lábios de onde saltam as sílabas da cantiga popular. Mamãe não bate palmas porque segura as rosas. Todos os dias ela traz um ramalhete. Há quantos dias? Ouvi o Ricardo dizendo ao telefone que estou aqui há três semanas. Semanas ou meses? Nunca contei à minha mãe que sou alérgica a rosas? Não lhe disse tantas coisas! Por quê? Sei bem por quê. Porque tive medo de que minhas palavras ficassem à deriva. Medo de que elas voltassem vazias para os meus ouvidos. Mas digo agora, mãe. Não por piedade, não por arrependimento. Digo para tentar me desfazer destas palavras. Quem sabe, sem elas, seja mais fácil desgrudar-me destes lençóis ensopados. Esforço em vão: de tão pesadas, minhas frases não conseguem alcançar seus tímpanos; estão tão imóveis quanto o meu corpo. Condenadas a apodrecerem na minha língua!
Ricardo, por que estas palmas trêmulas? Por que estas mãos que mais parecem as de uma criança constrangida? [Muitas felicidades, muitos anos de vida.] Eu quero as suas mãos, aquelas que me apertavam até eu gozar. Suas mãos que se encaixavam às minhas, nossas linhas da vida sobrepostas numa cópula que jurávamos eterna. Quanta ingenuidade! Não há juramentos de amor que o acaso não aniquile.
[Viva a Marcela!] Viver? O que significa isso, papai? Com a dificuldade de quem carrega uma biografia espessa nos ombros, ele se abaixa e, num sussurro, despeja palavras em meu ouvido, como fazia quando eu chegava com o boletim escolar pintado de vermelho: aproximava o bigode grisalho do meu rosto e minhas lágrimas, intimidadas pela candura das palavras, cessavam de descer. [No ano que vem tenho certeza de que você vai soprar as velinhas, minha filha]. A mágica acabou, papai: suas palavras não podem reanimar meus membros. [A Marcela vai ser abençoada, porque o Senhor vai derramar o seu amor.] Que derrame uma avalanche até me asfixiar!
Colocando seus velhos pulmões a meu favor, papai acaba com o escárnio das chamas que dançam acima das velas enterradas no meio do bolo branco. Sim, sou os pavios apagados presos aos dois números “dois” feitos de parafina, chamas que nunca voltarão a arder. Após a cantoria, mamãe acende as luzes. Abruptamente, vejo o farol daquele carro: noite turva, neblina, água, vento, o motorista não tinha como me ver. Asfalto escorregadio, freio algum funcionaria bem. E por que eu caminhava tão perto do meio-fio? Sempre tive medo de muros e grades; desde pequena andava de mão dada com o papai pela cidade, ele sempre do lado de dentro da calçada, me protegendo das paredes. Onde estava sua mão naquela hora, pai? As luzes cresceram à minha frente. Cresceram. Cresceram mais. Ficaram dolorosamente sublimes e se estilhaçaram ao encontrarem meu corpo. Meu corpo estilhaçado. O motorista desceu para me socorrer? Sim, fez tudo o que podia, papai jurou. E daí? O farol do carro apagou as luzes do meu porvir.
[Não há problemas com o aparelho vocal da Marcela. Deve ser algum entrave psicológico que impede sua filha de falar, senhor Cícero]. Após ouvir a sentença do médico, no mesmo dia que aqui me colocaram, papai sugeriu que me comunicasse com os olhos até que eu voltasse a conversar. De certa forma, só dávamos continuidade ao que fazíamos desde que eu era muito pequena. Sempre que tinha algo a falar a ele, algo que minha mãe não podia saber, dizia com os olhos. Foi assim quando quebrei o vaso de porcelana que ela tinha ganhado da vó Maria, herança de gerações remotas. Fui eu quem quebrou o vaso, disse papai à esposa indignada quando sentiu a aflição nos meus olhos.
[Agora é hora de abrir os presentes.] Marta pega a caixa mais brilhante do monte ao lado dos meus pés entregues. [Adivinha quem trouxe este aqui… Vou dar uma dica: esta pessoa saiu do mesmo buraco que você!] Mesmo presa em meu silêncio, cumpro minha função de irmã mais velha: Marta, que modo de falar da vagina da nossa mãe! Ela se aproxima e estende o colar a menos de um palmo do meu rosto. [Gostou?] Pisco uma vez, ela sorri. É o que ela precisa para abraçar a bijuteria prateada em meu pescoço. Nas lentes dos seus óculos vejo novamente o reflexo desfigurado que me atormentara em algumas madrugadas: um rosto roxo com a boca curvada para baixo; um pescoço deflorado por um tubo de plástico. Um bicho que não quero que seja eu. Mas o que pode a vontade perante a fortuna? [Ficou lindo, não?] Com olhos que agora parecem estrangeiros, pisco novamente: não tenho o direito de arrebentar as fronteiras do mundo da minha irmã.
Marta cede lugar à nossa mãe, que coloca seu embrulho sobre a barriga que já me pertencera. Feito um animal faminto, ela rasga o papel brilhante e retira um quadro grande com moldura rococó de dentro da caixa. Com a voz vacilante, diz que aquela imagem de São Judas Tadeu me ajudará a sair dessa situação. [Você precisa acreditar, minha filha. Nós não compreendemos os planos de Deus, mas Ele sabe o que faz da nossa vida. Nunca perca a fé. Reze, reze bastante porque Deus vai te escutar!] Não transfira para Deus o que você não soube fazer, mãe.
Ricardo se aproxima da cabeceira, não consigo ver nitidamente sua feição: o tubo de oxigênio priva minhas retinas da metade esquerda da sua face. Ele se ajoelha na cama e beija minha testa. Não me olhe assim. Onde estão os olhos que me engoliam antes mesmo que eu me despisse por completo? Numa das mãos, meu namorado traz ao pé da cama a caixinha aveludada que pertencia à pilha. [Amor, comprei seu presente dois dias antes do acidente. Já tinha planejado esta surpresa há quase um ano para o dia do seu aniversário.] Onde está sua outra mão? Deve estar apertando a minha. [Você aceita se casar comigo?] Brincadeira de mau gosto, Ricardo! Guarde este anel. [Ficou lindo.] Ele traz minha mão direita para junto dos meus olhos: um animal asqueroso agarrado ao meu dedo anular. [Não chore, amor.] Você ainda não se deu conta?
[Que apito é este? Chame a enfermeira, Marta. Rápido.] Nenhum de vocês percebeu que não há como enfeitar os fatos? [Coração disparado, acione o bipe do doutor Edmundo.] Sou eu que estou vegetando aqui? [Doutor, salve a minha menina.] [Ela está se urinando] Vocês não conseguem ou não querem enxergar? [Por favor, senhora, afaste-se da cama.] Não quero que sintam pena de mim, ouviram bem? [Marcela, olhe pra mim!] Estou olhando, pai. Como sempre. [Ela parou. Reanimação, enfermeira: oxigênio. De novo. Temos pouco tempo; ela pode ficar com sequelas neurológicas. Desfibrilador a 240 joules. Afastem-se da paciente. Um, dois, três, vai! Mais uma vez, agora em 360.]
*
Levanto as pálpebras como fossem as grossas cortinas do mundo, espetáculo de estreia. A luz do sol ilumina levemente o que se assemelha a um quarto de hospital. Um homem me observa atentamente. O que são estas bexigas murchas à porta? E esta fita vermelha pendurada? Um bolo de aniversário virgem: quem está completando 22 anos? Tento me levantar, porém meus braços e minhas pernas parecem costurados à cama. Acabei de acordar, como posso estar tão cansada? Com licença, o senhor poderia me ajudar, por favor? O homem, que sustenta uma caixa colorida no regaço, não me escuta. Eu não me escuto. Mas ele percebe meus olhos inquietos e se aproxima. Ao lado da cama, fica um longo tempo acariciando meus cabelos. [Sente-se melhor?] Não, não sinto nada, senhor. Absolutamente nada. [Não chore. Eu trouxe uma coisa que você vai gostar.] Ele retira uma foto de dentro da caixa e me mostra: um homem sentado numa cadeira de balanço com uma menininha de uns dois anos no colo. Homem que se parece muito com ele. É ele. [Você se lembra de quando tiramos essa foto, minha filha?] Filha? Ele me chamou de filha?
Matheus Arcaro (1984) é professor de Filosofia, artista plástico e escritor com dois livros publicados: Violeta velha e outras flores (Ed. Patuá, 2014) e O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá, 2016). Tem textos no Mallarmargens e na Germina. Além disso, é colunista dos portais Língua de Trapo, Educa Dois e LiterturaBr.