I
carrego na carne da memória
o ocre do chão
do barro molhado e moldado por mil pés
uma cruzada de mãos em foice
singrando um latifúndio ausente de piedade
um chão cão
amálgama sob um véu de chuvas
encharcando o flagelo da esperança
num tudo de crueldade
uma terra úmida de histórias
um algo sobre-humano de corpos ausentes de sujeitos
faces sem nome ou sobrenome
uma história povoada de impossibilidades.
impossibilidades de quase gente caminhando a esmo
senda estrada
serpente de martírio
carregando mil terços de prantos
mil terços de dores
um chão de dor
a sombra da dor que não quer deixar o chão
II
uma terra-nau
estrada nauta assombrada pelo fogo
pelo poder da marca em brasa
uma nau sem quilhas
sem velas
sem mar
nau de chão
passageiros do destino de morrer
e desmorrer a cada dia no ventre da mata
de morrer no arrancar de cada raiz
e desmorrer no plantio de cada semente
a lida de sangrar a terra e ser sangrado por ela
o massacre da estima de plantar e não colher
o partir e o repartir a tristeza de não ter morada
de ser presa da ganga impura
passageiros do destino de ser coió a força
sob o poder empunhado por pistolas
sob o olho da pólvora mirando toda lavra
sob o sol
sob a chuva
e à sombra única das nuvens
III
um cordel de viventes isentos de toda maldade
usurpados de liberdade
do desejo de desejar
a sorte em chagas nas mãos
as mãos vazias de futuro
as mãos que já não tem forças pra apelar
os apelos mudos cravados em mãos
em pés
em olhos de súplica
as mãos
os pés
e os olhos reféns
reféns na ilha da ilha da soberba
cercados e ameaçados pelo grito de quem prende
e escraviza
IV
um tropel de dor à flor da carne de mil vidas
a sofreguidão de promessas não cumpridas
mil promessas de vida
soterradas pelo degredo
mil sonhos abortados nessa estrada turba
cava e cova de mil virtudes
mil virtudes caminhando sem caminhar
um caminho no descaminho
testemunha de um círio infindo
no sempre de partilha pelo pão e pelo sangue
o pão e o sangue de um deus que nunca nasceu
um chão deflorado de paz
deflorado de fé
deflorado de deus
uma fé sem deus
do rebanho de toda gente
vindos do quase nada
cobertos de toda espera
vazios de futuro
de onde vêm?
para onde vão?
sempre passando
sempre passando
V
uma passagem
uma passagem marcada de memórias
no rastro das botas
as folhas mortas pisadas sob o mesmo suor
molhadas de infortúnio
uma lavoura de infortúnio
turvas memórias
poucas palavras
de silêncio
e espera
a espera que esse chão vingue outro chão
outro chão chorado por tanta prece
sonhado por tanta promessa
uma terra de promessa
uma promessa
apenas promessa.
Wanda Monteiro é escritora e poeta, uma amazônida nascida às margens do Rio Amazonas, no coração da Amazônia, em Alenquer, Estado do Pará. Reside há mais de 25 anos no Rio de Janeiro, mas só se sente em casa quando pisa no leito de seu rio. Seu livro mais recente é Aquatempo — Sementes líricas (Editora Literacidade, 2016).