gourmetização, de Angel Cabeza

Eis que abro minha caixa de e-mails e lá está o convite de um amigo para a festa de seu filho. Sei que as coisas andam estranhas, que eventos assim se tornaram escassos devido ao acúmulo de afazeres tecnológicos, e que as bolinhas de queijo e rissoles perderam o brilho, mas quem sabe ainda exista um olho de sogra redentor em pleno século de celulares e selfies? Uma simples e velha festa com direito a música da Xuxa e coxinha fria?

Não preciso ir além de alguns cliques para confirmar minha tese pessimista de que perdemos a infância para a gourmetização. Lá estava o happy finger foods and tapas estampando o convite e eu me perguntando como um garoto de 11 anos poderia fazer tal análise gastronômica.

Talvez por sermos de uma época em que as festas eram mais “exóticas”, você e eu, leitor criado a cajuzinhos, estranhemos. A começar pelos convites, que eram escritos à mão em desbotados modelos de papelaria. Quanto mais duvidosos, melhor. Embora não deixassem rastros visuais sobre o gênero do aniversariante, valiam o suspense. Acredito que muitos recorreram a cartomantes e búzios para descobrirem se compravam uma boneca ou um carrinho. Hoje abandonamos o “em mãos” e tudo chega nas caixas de e-mails, provavelmente produzidos por um birthday design.

Os temas também evoluíram. Se antes flutuavam entre bolos de fruta e palhaços assustadores — e acredito na tática assumida dos palhaços para que as crianças mais entusiasmadas não roubassem os brigadeiros da mesa — agora prestigiam o surrealismo mágico e disforme dos corantes e manteiga, flutuando entre a Peppa Pig e Bob Esponja. Uma festa descolada precisa de um Cake Boss com modelagem francesa e a dúvida dos convidados — que não entendem a “desconstrução-conceitual-warholiana” do bolo ou não sabem se estão num aniversário ou casamento.

O ponto alto das festas também se foi. As saudosas coxinhas e pizzas frias de sardinha da avó foram reestruturadas para as famosas tapas (a primeira vez em que fui a um restaurante e o rapaz perguntou se eu queria uma tapa, quase fomos à delegacia) com seus canapés de parma e figos marinados, trouxinhas de peru com sour cream de amora, rabanetes esvoaçantes com cabelos de cenoura flambados, bastonetes peruanos de milho enluarado ou pinchos de luas impressionistas (nada mais do que ovo de codorna com molho rosé).

Bolinhos encharcados de óleo ou quibes carbonizados? Moderno mesmo é contratar um table stylist para uma mesa arquitetada com a precisão de um Niemeyer. Se não houver espaço para uma esfirra desconstruída pela cozinha molecular, que acredito ser necessário um curso superior em biologia ou física para tal, nem pense na festa. Tente falar sobre o olho de sogra e a ira divina recairá sobre você. Onde já se viu, olho de sogra? Com tanto brigadeiro gourmet de café, paçoca, chocolate invertido, nada de ameixa seca.

Sim, caro leitor gourmetizado sem saber, perdemos o estrambólico dos aniversários bregas. Abandonamos os chapéus de elástico, os sacos de pipoca, os pirulitos de açúcar. Rissoles mixurucas, com aquela suposta papinha duvidosa de camarão, nunca mais. Após a gourmetização de nossas crianças, “Que Marravilha!”, a pressão no pratinho de salgados cresceu e vivemos numa prova do Master Chef com eliminatória dupla na categoria pâtisserie. E ai de você dizer ao seu filho que fará só um bolinho. Será o mesmo que dizer “bolo de fubá” e “papai não te ama”.

Há uma luz no fim do bolo, eu sei. Um festeiro atento poderá respirar aliviado, pois tudo o que encontramos atualmente não passa de uma releitura de nossa saudosa breguice de infância. Se finger food é comer com os dedos e tapas são porções pequenas e variadas, além daquilo que dávamos no filho quando enfiava o dedo no bolo, pode colocar as coxinhas de volta ao cardápio, pois nada está perdido. É só argumentar com convicção e demonstrar a real influência da nova gastronomia, que fez escola com a vintage food: botecos, pororocas, coxinhas e palhaços assustadores.

No fim das contas, não há nada de novo no reino das bolinhas de queijo. Ou seriam cheese balls?

Angel Cabeza é carioca. Poeta, cronista, produtor editorial e gráfico, publicou Sempre existe um último momento (crônicas, 2011) e Vidro de guardados (poemas, 2010). Integra as antologias O Casulo, 29 de abril, O verso da violência, Escritores da Língua Portuguesa, Volume I, Qasaêd lla falastin — Poemas para a Palestina e Geração em 140 caracteres. Possui textos publicados em revistas literárias, entre elas Germina, Zunái, Odara (UFRJ), Eutomia, Cronópios, Saúva, Subversa, Cuarto Próprio e Generación Espontánea. Blog: http://angelcabezza.blogspot.com.br