Um dia minha namorada chegou para mim e me pediu um dinheiro. Emprestado, disse, depois de dizer a quantia. Logo no meio do mês.
Eu perguntei se era alguma prestação atrasada. Ela respondeu que era para fazer um aborto.
Eu disse que ela nem tinha me contado que estava grávida, e que de repente podíamos discutir o assunto, ter nosso filho, casar, já tanto tempo de namoro quase noivado, fins de semana na minha casa com meus pais e meus irmãos, domingo almoço na casa dela com a mãe e o padrasto, mudar isso tudo e procurar um apartamento pequeno, morar juntos, talvez mesmo casar no civil e no religioso…
Ela cortou minha frase ao meio. Disse, o filho não é teu. O olhar frio dela segurou minha mão no ar, a poucos centímetros do rosto dela, um tapa, uma bofetada, um soco, um pescoção parados no ar, um soco de minha mão impotente em meu próprio peito, só consigo perguntar, como você sabe? quem é o outro? o corno aqui conhece o outro?
Fui estuprada, ela diz. Sem chorar, sem desmanchar o olhar frio, de ódio. Ela não quer minha pena, meu carinho, eu sinto, agora ela só quer de mim o dinheiro para resolver a situação. Com sorte, se sobrevivermos a isso, depois ela pode até voltar a querer meu carinho; hoje não, eu sei. Tento ganhar tempo para pensar: por que você não me disse nada?
É pior, o olhar de ódio se enche de desprezo: e adiantava?
Eu podia te ajudar, te apoiar, você foi sozinha à polícia, ao exame de corpo delito? eu podia procurar o bandido, dar uma surra nele, matar, depois alegava defesa da honra, eu podia pelo menos chorar com você.
A ironia é um muxoxo. Não fui à polícia, ia ser pior, nunca contei pra ninguém. Você me empresta o dinheiro? pois não tenho, não posso pedir a minha mãe.
Sabe quando você quer fechar os olhos e apagar a última meia hora de tua vida, nascer em outro lugar distante, ou abrir os olhos e acordar de um pesadelo? Mas não era pesadelo, minha namorada estava lá, séria e grávida. Um ar diferente, alguma coisa diferente que tem uma mulher grávida, mas desta vez o que estava dentro dela era como um parasita, um vírus, um tumor indesejado que tinha que ser operado.
E quem foi, pergunto, mesmo sabendo que estava ultrapassando um limite, um caminho sem volta que nos levaria a um abismo, a um inferno em vida, irremediável. Mas eu tinha que seguir este caminho para o precipício, e repito a pergunta, alguém que você conhece, um vizinho, um colega da escola, um playboy bandidinho da área?
Ela não responde.
Eu não pergunto mais nada. Estou muito cansado. Dou outro soco em meu peito.
Mas eu tenho que continuar pelo caminho que vai nos levar ao inferno. Pergunto mais uma vez, quem foi, eu tenho o direito de saber, eu quero matar este infeliz, este monstro. Eu não vou chorar, eu não quero chorar, eu não posso chorar, enfio as unhas em meu braço com força, eu quero sangrar para não chorar.
Ela não diz nada. Não mais a ironia, o desprezo, o ódio. Agora só um rosto vazio, como um papel em branco, como o rosto de um morto. Enquanto eu enfio mais as unhas em meu braço, ela aperta as mãos, estala os dedos, o barulho do atrito das falanges falanginhas falangetas é o único som que se ouve, até que eu pergunto mais uma vez, pelo amor de deus, em nome do amor que eu tenho por você, quem fez esta maldade com você?
Ela diz apenas, muito calma mas ainda estalando os dedos, não vou dizer se não acaba o casamento de minha mãe e ela nunca vai me perdoar por isso.
Estamos no inferno, nunca mais vamos sair deste inferno. A única coisa que posso fazer, escrevo um cheque, amanhã peço um adiantamento no trabalho para cobrir o saldo negativo do cheque especial.
Jozias Benedicto é escritor e artista visual, vive e trabalha no Rio de Janeiro, onde concluiu, pela PUC-Rio, a especialização em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo. Como artista visual, participou, entre outras mostras, da XVI Bienal de São Paulo (1981). Recebeu o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais 2014 por seu segundo livro de contos, Como não aprender a nadar (Editora Apicuri, 2016). Seu primeiro livro de contos, Estranhas criaturas noturnas (Editora Apicuri, 2013), foi finalista do Prêmio SESC de Literatura 2012/2013. O conto “Saldo negativo” foi publicado em Sábado na estação (Editora Apicuri, 2012), coletânea de contos organizada pelo escritor Luiz Ruffato.