trecho de ‘glória’, de Cristina Judar

Glória é uma das quatro partes que compõem
o romance Oito do Sete (Editora Reformatório), de Cristina Judar.

Aquilo que se diz em inglês sobre se colocar no lugar do outro, put yourself in someone’s shoes, deveria fazer referência ao intestino. Colocar-se no intestino do outro, aí sim, um exercício de humildade e compaixão. O intestino é um baixo coração. O que é abjeto para o mais nobre dos músculos desce e encontra o seu lugar ali, nas vias sinuosas, onde a alquimia rarefeita de utilidades e inutilidades trabalha incansavelmente. As portas do intestino estão sempre abertas. Ele é um espaço democrático, talvez o mais democrático do nosso corpo. Livre e desimpedido, um celeiro de diferenças. O intestino é a prova concreta de que ao alto coração falta conteúdo. O alto coração só quer saber de sanguinho, delicadezas ou sofreres enobrecedores. Ele se recusa a se misturar.

Tive uma epifania logo depois de comer Rigatoni alla Pajata pela primeira vez. O prato mais antigo de Roma. Massa com molho de intestino de vitelo, cordeiro ou cabrito recém-nascido. Animal que em toda a sua curta vida bebeu só o leite da mãe. E que depois de morto é mergulhado no leite, do qual ele ressurge purificado. Apenas para que seu intestino seja usado em um molho para pasta. Se não houvesse o intestino, não haveria graça, não haveria receita, não haveria Donanna e nem mesmo Roma. Rigatoni alla Pajata é um dos pilares desta cidade. Sustenta séculos de tradição. Une famílias ancestrais, atrai turistas ao transformar um espaço físico de livre circulação, sem distinção, em coisa de paladares finos. Em terra de Vaticano e Coliseu, o Rigatoni alla Pajata simboliza a ascensão dos marginalizados. O Rigatoni alla Pajata dá visibilidade às massas. Comer Rigatoni alla Pajata é um ato político.

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Certo dia, o rio Tibre perdeu a cabeça. Tio River não, rio Tibre! Ele ficou fora de si. Explodiu, rugido. Ele percorre toda a gente, que, com a sua reação, ficou um pouco louca também. O Tibre floodou. O Tibre é quase um tigre. Em Roma, é masculino e das selvas o rio de tudo o que está aqui. Nada de maternidades. Ele é masculino, o Tibre impõe-se, é determinado em sua rota, assertivo em seu papel hidrossocial. E quando ele explode, não poupa ninguém. Sempre está sujeito a cheias imprevistas. O Tibre é escandaloso e brutal. Invade aos berros, submerge os mansos. Ele teve dois bebês em seus braços e logo se livrou deles. Ele não tem a menor paciência. Ele não quer se envolver. Acha um saco ter uma cidade do lado de fora de suas margens, cidade sedenta. Ele está farto, energética e fisicamente. É muita gente chata ao seu redor. Uma gente que não para de falar. Eu vi todo mundo correr no dia em que ele deu vazão à sua cólera. Vi todo mundo chorar, o que piorou a desgraça. Resultou em uma somatória indesejada de líquidos. O rio já estava soterrado por tantas exigências humanas. O rio já estava afogado, em um desgaste só por fornecer recursos de maneira descontrolada. Aí ele resolveu dar tudo de uma vez. Que cada um pegasse sua parte de água e o deixasse em paz, ao menos por uns tempos. Só que o rio perdeu a noção espacial, que já não era lá muito boa. Ele encheu de água a boca e os pés do povo. Bambaleou as estruturas de pedra. Protelou casamentos. Desmantelou outros. Adiou jantares e evitou que cordeiros fossem mergulhados no leite. Fez das mulheres ainda mais ajoelhadas, dos rosários mais rosários. O rio Tibre não nega o sangue romano que corre em suas veias.

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Donanna tem parte com Nero. Em Roma, todo mundo tem o rabo preso com ele. É como o nosso brasileiro “ter parte com o demo”, só que com N e R no lugar de D e M. E um tanto mais glamouroso, mais Divine, mais romano. Para eles, as desgraças não podem ser discretas. É tudo Hollywoodiano. De blush marcado e toga solta, que deixa entrever as partes íntimas. Isso está nas raízes do povo, não tem como fugir. Está na fundação das edificações. Magda ia gostar daqui, especialmente pelo aspecto estético. Ricky se deu muito bem, especialmente pelo lado sensorial. Ele sempre teve parte com Nero, mais do que com o demo, embora não soubesse disso. Precisou vir aqui para descobrir, para revelar sua natureza. Nero cuida bem dos seus filhos dedicados, dos neófitos que no passar dos séculos propagam sua mensagem de desordem. É bom ser discípulo do rei do caos e com ele não criar casos maiores, ser uma cria dedicada. Discípulos de Nero adoram ver o circo pegar fogo, o grande circo romano. Tocam lira enquanto a cidade está em chamas, no sentido literal ou figurado. Eles lixam as unhas e dão uma assopradinha. Pensam na próxima conquista, em vinganças espetaculares, no que vai ter para o jantar ou como vão queimar os filmes de outrem. Algumas pessoas adoram queimar filmes e queimam-se uns aos outros. Postados frente a frente, fogueiras espelhadas. O movimento das chamas refletido em suas íris, como aquelas fotos com excesso de flash ou os efeitos de um filme B, de vampiros com sangue nos olhos. O excesso de tragédia força tanto o nosso peito em uma certa direção que resulta em uma emoção contrária, algo que a natureza deve estimular para o alcance de algum equilíbrio. Águas vindas de sangue, lágrima ou saliva providenciam a hidratação necessária diante de tanto fogo. Lavam a aura seca e trazem marés de cheias e ressacas. Luas inteiras para mulheres médias, sejam elas rainhas, diminutas ou escravas. Nessa época eu não sabia em qual categoria eu me encaixava. Ou se eu era todas elas. Ou outras três. Remexendo nas cinzas minhas, só tinha uma certeza: eu e Magda éramos duas, mesmo que eu não soubesse para onde isso ainda podia me levar. Pela primeira vez, pensei em fazer as malas. O teatrinho romano já tinha me cansado. Donanna nomeava-se dona das minhas horas, virei uma pandora aprisionada de sua caixa, porém sem surpresa, nem vontade. Ela submergia meus fogos em tarefas contínuas, em latrinas arrebatadas, pias de louças seculares lavadas no dobro do tempo, talheres de espelho intocados sob a pena de maldição eterna. O redemoinho descia pelo ralo, mas eu não queria ir para o buraco. E, se fosse, que acontecesse em meu país. Que ao féretro ao menos seja dado o direito de escolher a terra onde se deitará. No centro de Roma, era como se eu estivesse em pleno sertão, entre as fogueiras invisíveis que povoam os ares de janeiro. Chamas nas palavras, nas línguas, nas sílabas, nos varais. Nem com toda a água do Tibre haveria forma de aplacar tamanha força de natureza ígnea, com a qual eu desisti de lutar.

Cristina Judar é escritora e jornalista, autora das HQs Lina (Editora Estação Liberdade) e Vermelho, Vivo (Editora Devir). Seu livro de contos Roteiros para uma vida curta (Editora Reformatório) recebeu Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014. Em 2015, durante uma residência artística com foco em literatura na Queen Mary University of London, deu origem ao projeto de prosa poética Questions for a Live Writing. Contemplado pelo ProAC de Literatura 2014, Oito do Sete é o seu primeiro romance, lançado este mês pela Editora Reformatório.