Vavá era alto, magro, orelhas grandes, nariz longo e cheio de pelos. Um dono de bar à moda antiga, sempre de jaleco branco, calça social, sapatos de couro, e aquele gel no cabelo penteado pra trás. O abridor de garrafa não lhe saía do bolso nem o pano do ombro, e os pedidos ele ia anotando em papeizinhos que afixava na parede usando durex. “Vavá de Valter?”, eu perguntei um dia. “Não. Eu tenho o nome da capital dos Estados Unidos”, respondeu com orgulho. Vavá era fã do Elvis Presley. Tão fã que a gente chamava o lugar de Bar do Elvis.
Era pequeno, bem estreito, com um longo balcão de madeira revestido de fórmica bege dividindo o salão em duas partes, desde a porta da frente até os fundos, onde ficava o banheiro. As paredes eram dominadas pelo Rei: cartazes, quadros, notícias de jornal, discos. Na TV de 14”, que ficava em cima do balcão, sempre estava passando algum vídeo do Elvis. Vavá devia ter a filmografia completa, desde shows até os filmes em que o Rei atuou. Uma vez fui sozinho pra lá, pedi uma cerveja e assisti do balcão ao famoso show do Havaí, aquele em que o Elvis aparece de colar havaiano e está usando uma daquelas suas roupas extravagantes da fase setentista que acabaram se tornando sua marca registrada. Tanto que se você entrar em qualquer loja de fantasia e pedir uma do Elvis vão lhe trazer a versão azul ou branca de um macacão com brilhos e franjas, além das costeletas postiças. Eu sei porque meu pai uma vez foi de Elvis numa festa à fantasia. Eu estava de gladiador. Formávamos uma dupla incrível.
Lá no Elvis tinha umas figuras curiosas. Todo bar tem as suas. O Velho Marinheiro, por exemplo. Barba branca, boininha de lado, cigarro pendurado na boca, copo eternamente na mão, ele parecia o Capitão McCallister dos Simpsons, só que mais gordo e acabado. O roteiro era sempre igual: ele enchia a cara de cerveja e conhaque e acabava pegando no sono sentado, com o cigarro na boca e o copo cheio. Vavá, gentleman como sempre, deixava o velho em paz e só o cutucava na hora de fechar. Mas teve um dia em que o Velho Marinheiro começou a se mijar todo e aí o Vavá precisou entrar em ação. Talvez sonhando estar diante de uma privada, o Velho começou a mijar ali mesmo, sentado, de braguilha aberta e tudo, segurando o pau pra fazer mira. Formou-se rapidamente uma enorme poça sob a mesa. Já tinha visto bêbado mijar nas calças, mas aquilo era diferente. O Velho, mesmo dormindo, teve as manhas de descer o zíper, sacar a pistola, fazer mira, e aí dane-se se tem uma privada na tua frente ou não. Tudo bem. O Vavá nem ligou. Discreto, chamou um táxi, pôs o Velho lá dentro e telefonou à esposa, como sempre fazia, pra avisar que o marido bebum estava a caminho.
Certa vez o Vavá me revelou o verdadeiro motivo da morte do Rei:
— Vou contar uma coisa — disse em tom de confissão. — Você sabe, o Elvis morreu.
— Claro — respondi.
— É que tem gente por aí que acha que ele não morreu. Dizem que ele fugiu, que cansou de ser celebridade, sei lá. Nunca ouviu isso não?
— Já ouvi alguma coisa…
— … e que hoje vive escondido em algum lugar, vivendo no anonimato e protegido por uma tal de lei de proteção a testemunhas ou algo do tipo. Mas isso é coisa de gente louca — ele disse abaixando o volume da voz e olhando direto nos meus olhos. — Você cai nesse papo? Eu não caio nesse papo. Com tanto paparazzi, Carlos, você acha que já não teriam flagrado ele tomando banho de sol numa praia do Caribe?
Assenti com a cabeça.
— “Elvis não morreu” é uma isca criada pelo mercado pra manter as lojas vendendo…
Vavá se empolgava ao falar do Rei.
— Mas tem um detalhe que pouca gente sabe, Carlos — e, chegando ainda mais perto de mim sobre o balcão, como quem vai revelar um segredo guardado a sete chaves, pôs a mão próximo à boca e sussurrou no meu ouvido. — Dizem que foi droga, mas não foi não…
— Sério, Vavá? Não sabia.
— Pois é. Pouca gente sabe. A imprensa fala que ele morreu por abuso de calmantes, mas não é verdade.
— Não?
— Não. A verdade é que o Elvis morreu cagando.
— O quê?
— Isso mesmo: cagando. Ca-gan-do — ele soletrou. — Dá pra acreditar? Acharam o corpo dele caído no chão do banheiro. Ele tava sentado na privada fazendo força quando a veia da cabeça se rompeu.
Dei um longo gole de cerveja.
— Cagando, Vavá?
Ele continuou falando baixo, agora assumindo um tom lamurioso:
— E queria o que, Carlos? Não foi por falta de aviso. O médico cansou de falar pra ele se alimentar melhor, pra comer fibra, comer fruta, mas o cara era teimoso, só comia Mcdonalds, bacon, ovo frito.
Elvis não soube se cuidar e deixou uma legião de Vavás inconformados e saudosos para trás. Quase fiz a piada infame “então o Rei morreu no lugar certo: o trono!”, mas considerei que isso poderia ferir seus sentimentos.
Ele continuou:
— Fez tanta força que a veia não aguentou, não teve jeito… — disse, já resignado. — E aí, você sabe, a versão oficial não vai ser essa, por respeito à imagem do ídolo e tal… Mas a realidade pouca gente sabe. Só quem é fã mesmo. Eu sei porque estudei.
— Leu numa biografia?
— E você acha que alguma biografia vai falar isso? Não seja ingênuo, Carlos. Todos foram muito bem pagos pra calar o bico. Já disse: as lojas têm que continuar vendendo camisetas com a cara do Rei. E assim a banda toca, você sabe…
Sinceramente, não acho que a imagem do Rei do rock seria manchada caso se comprove a versão polêmica de Vavá. De todo modo, não disse nada. Por consideração ao Vavá, por respeito. Voltei a tomar minha cerveja, ele voltou a fazer suas coisas atrás do balcão.
Na TV, um Elvis ainda jovem cantava “Love me tender”: “Me ame com ternura / me ame com doçura / nunca me deixe partir”. Vavá tinha começado a limpar a tela da TV com o pano: primeiro passou delicadamente nos cantos empoeirados, depois no centro, esfregando em movimentos circulares todo o retângulo brilhante, como se fizesse carinho no rosto do ídolo, ao mesmo tempo em que tirava as manchas de gordura. “Você tornou minha vida completa / e eu te amo tanto”. Cada vez mais próximo da tela, cara a cara com o Rei, o rosto de Vavá se iluminou. “Eu serei seu por todos os anos / até o final dos tempos”. Quando o vídeo terminou, ele se afastou lentamente da TV, largou o pano sobre o próprio ombro e tomou uma dose de conhaque.
Vavá faleceu anos depois e o Bar do Elvis foi vendido e demolido para dar lugar a um estacionamento.
Carlos Conte é professor de redação e sociologia. Escreve crônicas e contos.