questão de calço, de Adriana Brunstein

Há muito, muito tempo, eu caminhava com a minha mãe pela Paulista e um senhor, logo a nossa frente, deixou cair parte de um daqueles bilhetes da loteria federal. Eu me prontifiquei a pegá-lo e devolvê-lo, mas ela me advertiu: “Adriana, é um truque. Ele vende bilhetes. Assim que você pegar ele vai dizer que foi obra do destino e que você tem que comprar aquele bilhete, que vai ganhar o prêmio”. Era verdade. Ele fazia isso mesmo. Não só ele, mas dezenas de vendedores. E eu era uma garotinha que acreditava em tudo, inclusive em pessoas. Para mim era inconcebível alguém ser tão ardiloso assim. Eu queria mesmo a vitória do que o destino supostamente me reservara, passar pela vitrine da lotérica ao redor da qual vários sonhadores se acumulavam e ver meus números ali. Eu queria que aquele senhor realmente soubesse das coisas que iriam acontecer. Aí eu me assustaria bem menos. Mas anos depois, eu já estava no colegial, voltando de ônibus para casa, e dessa vez foi uma senhora que se meteu a fazer previsões para mim. Eu fiquei estupefata, como era possível ela saber tanto sobre uma adolescente com cabelo de poodle rebelde, ouvindo Iron Maiden no walkman e patches do AC/DC costurados na calça? Como é que ela saberia que eu tinha atritos com meus pais? E então ela me disse, depois de tudo, que era pra eu me levantar que meu ponto estava chegando. Mais uma vez eu acreditei que havia algo reservado para mim, porque aquela senhora não poderia ser mais uma ardilosa que num outro dia qualquer, naquele mesmo ônibus, pediria algo em troca daquelas previsões, né? Mas o auge aconteceu mesmo no shopping Eldorado. Caminhava eu, já em tempos de universidade, gastando minha bolsa de iniciação científica inteira numa calça da M. Officer, quando uma menina magra se aproximou de mim e disse que sentiu algo muito estranho. Eu devo ter uma cara de trouxa ímpar. Pois bem, ela me disse que tinha uma inveja gigantesca em cima de mim e que inclusive haviam amarrado meu nome na boca de um cavalo. Como é que é? Na boca de um cavalo? Sim, era muito grave alguém fazer isso, mas por sorte a tia dela era uma ótima desmanchadora de feitiços e se eu desse uma grana para as velas isso se resolveria logo. Eu estudava Física, o que raramente me daria um futuro abastado, era dura que só, namorava um cara que pouco se diferenciava de uma parede, quem diabos amarraria meu nome na boca de um pobre cavalo? Ela fez aquele olhar de Whoopi Goldberg recebendo Patrick Swayze e disse que foi uma mulher morena. Oras! Quem é que nunca foi sacaneado por uma mulher morena, caramba? Gastei a grana das velas provavelmente num McDonalds´s pensando em como, de fato, temos vontade de acreditar em qualquer coisa que nos justifique esse estranhíssimo estar por aqui, que às vezes pesa demais. Se aquele senhorzinho lá do começo não tivesse destruído meus sonhos, eu não carregaria medos nas velhas pistolas de plástico que outras crianças enchiam de água para se divertir. Mas bem disse Pascal, toda a infelicidade do homem decorre de uma só coisa: ser incapaz de ficar sossegado no seu quarto. No entanto, ele jamais falou o que fazer com os bichos papões que a gente esconde embaixo da cama e vai aumentando o calço só pra ela não balançar tanto. Envelhecer é bater a cara no teto.

Adriana Brunstein é Ph.D. em física, escritora, dramaturga e roteirista, com trabalhos em várias vertentes e meios da comunicação. Ganhou o prêmio HQMIX 2008 de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Graphic Novel Prontuário 666 — Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão e foi contemplada pelo 13º Cultura Inglesa Festival com o curta-metragem Olhos de Fuligem. Publicou o romance Estado Fundamental pela Panelinha Books (2012), participa das antologias de contos Casa de Orates (Editora Mondrongo, 2016) e O Outro Lado da Notícia (@link Editora, 2016). Lança, em breve, Pancho Villa não sabia esconder cavalos, pela Editora Laranja Original. Tem textos publicados nas revistas literárias eletrônicas Mallarmargens, Germina, Diversos Afins e Escritoras Suicidas.