“Damos sepultura, sem pompa, à ultima rosa desse verão chuvoso.”
Juan Carlos Onetti
O serviço tinha sido feito. Tudo correra como ele havia previsto e da maneira requisitada. O local, ele mesmo havia escolhido, no alto daquela montanha. Ele passou as costas das mãos na testa para enxugar o suor. Depois de fitar demoradamente o líquido que escorria de sua mão úmida, pensou que estava tudo arranjado. Agora, era apenas uma questão de tempo e de espera, conforme o plano.
Lembrou disso no terceiro mês, em que, sentado na varanda do chalé, observava mais uma vez as gotículas de suor na mão direita. Do topo onde estava situado, ele pode rememorar diversas vezes o caminho percorrido antes. Dali ele também podia observar as árvores altas que marcavam a localização exata. Em noites de lua cheia, quando o céu ficava iluminado, o espectro das araucárias parecia dominar e se impor sobre o horizonte recortado das montanhas. Era o espectro daquele lugar.
Nesses dias, ele suspirava e pensava no tempo que faltava para que eles viessem. O prazo acertado havia sido cinco meses. Nem mais nem menos. Era o tempo necessário para que ninguém desconfiasse.
Pela primeira vez na vida, após trinta e dois anos, ele tinha tempo para refletir. Essa era, por sinal, a razão do suor constante na testa, cujo início de calvície tornava ainda mais brilhosa. No começo, antes da série de acidentes que o levaram até ali, ele não havia encarado a espera naquele lugar ermo como uma dificuldade. Todas as suas energias estavam voltadas para o ato. Uma vez realizado, todo o restante lhe parecia fácil.
Agora, ele estava sentado, barbudo, vestido apenas com uma camisa fina branca e uma bermuda, na beirada do chalé, suando abundantemente. Tinha o olhar perdido dos que ficam muito tempo a mirar montanhas.
No quarto mês ele já havia decorado, nos mínimos detalhes, todas as nuances do caminho que separava o topo onde estava do outro lado, de onde havia partido no dia fatídico. Esse quarto mês estava sendo o mais difícil, pois ele sabia que logo tudo estava perto de terminar, e a sensação de que algo pudesse sair errado tornava a espera ainda mais insuportável.
Foi na última semana que uma forte neblina nunca vista antes começou a tomar conta de tudo. Ele ficou angustiado de não poder ver mais os pinheiros que demarcavam a cena do acontecido. O encontro havia sido combinado para acontecer no chalé, e, em seguida, iriam juntos até o local.
Aquilo começou na segunda e continuou se estendendo pelo resto da semana. Seu maior medo era que a neblina impedisse a chegada dos outros. Ele próprio não conseguia enxergar um palmo à frente. Os dias se sucediam com poucas diferenças entre manhã e tarde. À noite, aquilo tudo se entrevava como se fosse o final dos tempos e mesmo a lua, tão brilhante nos dias anteriores, havia desaparecido por completo, como se tragada pelo monstro cuja respiração tornava tudo ao redor nebuloso.
No quinto dia, exasperado, e já com toda a paciência esgotada pelos meses sozinho no esconderijo, resolveu voltar ao lugar de onde partira quase cinco meses antes.
Deixou o chalé e, lentamente, começou a descer, tropeçando e parando a cada passo. Agora, era seu corpo inteiro que suava, como se numa sauna, ao contato com o ar molhado. Mais de uma vez ele caiu e se levantou; numa dessas quedas, esfolou o joelho.
Depois começou a subida, que pareceu durar uma eternidade, parando de vez em quando para descansar. Guiava-se pelo instinto e pela memória, tentando reconhecer em cada pedra à beira do caminho, em cada árvore que encontrava pela frente, um sinal capaz de orientá-lo na direção correta.
Ao cabo de algumas horas, alcançou o outro lado da serra, quando começara a escurecer, e percebeu que calculara errado o tempo de sua saída. Sem conseguir enxergar mais nada, ficou parado, estático. Sentia o ar gelado e escutava os múltiplos ruídos da noite o envolver. Depois, traído pelo cansaço, deixou-se tombar ali mesmo, no meio da relva e das hortênsias que cresciam por toda parte.
Os primeiros raios do sol o despertaram. Olhou com surpresa para o firmamento: a neblina havia se dissipado quase que totalmente. Girou o corpo, olhando ao redor, para observar melhor onde estava. Retomou a caminhada, subindo cada vez mais.
Dali a pouco, pôde distinguir as árvores altas e o mato espesso que eram a indicação daquilo que estivera mirando meses a fio de sua cabana, do outro lado da montanha. Inesperadamente, algo o fez gelar. O som das vozes próximas fez com que parasse de repente, o pulso acelerado, em estado de atenção. Foi se acercando cuidadosamente do lugar, tomando todas as precauções para não ser notado.
Protegido pela vegetação, repleta de samambaias nativas, observou o homem com a caneta na mão, que preenchia algum tipo de formulário. Mais adiante, não pôde deixar de ver o corpo, já devidamente enrolado num saco preto de defunto, e quatro ou cinco pessoas em volta, que conversavam entre si, de vez em quando apontando para o pacote preto esparramado no solo, enquanto outro homem colocado mais adiante tentava uma comunicação por rádio.
[…]
Os pés calcavam velozmente e com força o terreno molhado, as pernas esticando-se ao máximo, movimentando todos os tendões. Não sentia mais o joelho esfolado, o cansaço dos dias passados, a difícil subida em meio à escuridão e à neblina.
Tudo que sentia era uma necessidade louca de ir em frente, fugir, correr, escapar. Seus olhos ansiavam pelo momento em que vissem novamente os pés tocando o asfalto. Longe, muito longe, estava a estrada. E então seria a carona no caminhão velho jogando fumaça, queimando óleo diesel, em disparada, e ele agarrado ao banco, na boleia, pisando fundo, no lado do passageiro, e olhando nervosamente o retrovisor.
Lauro Marques é jornalista, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Lançou em novembro de 2010, na Casa das Rosas, o livro de poesia Sumário de Incertezas, pela Ed. Confraria do Vento (esgotado). Seu segundo livro, de 2015, Eminências Pardas, foi lançado de forma independente e está disponível na Amazon.