despia-se de seu formato original para agora repousar no infinito nada
Fernando Rocha
Sujeito sem verbo é o título do primeiro livro de contos do paulistano Fernando Rocha. O que ficou conhecido como A hora da estrela é somente um dos 13 títulos alternativos que Clarice Lispector nos sugeriu para a sua última novela. Alguém já fez o exercício de entrar por outro título? Por exemplo “Assovio no vento escuro”? Eu já, já tentei entrar por todos os títulos, experimentar, no mínimo, 13 livros, mas isso é outra história. Agora estamos tentando entrar no livro do Fernando. É difícil. Mas o título oferece algumas pistas. Vejamos: sujeito sem verbo, sujeito sem ação, sujeito passivo, que não atua. Se trata, então, de sujeitos impotentes? Eu me atreveria a dizer que não, que são sujeitos sem poder, mas potentes. As personagens-sujeito do Fernando me invocaram o escrivão Bartleby, de Melville, o seu incansável refrão: I prefer not to. A associação não é simples, é mais bem complexa, há que construí-la.
Digamos de partida, como solo comum, que tanto os personagens do Sujeito sem verbo, quanto Bartlebly, compartilham uma linha de tensão que conduz o sentido ao seu limite. Bartleby repetindo sua fórmula “I prefer not to”, que não é nem sim nem não, mas justo uma zona tensional, indiscernível, que desnuda a linguagem, expõe sua linde, cartografa seu fora onde ela se abre a si mesma e se confronta com o silêncio. E as personagens do Sujeito sem verbo, com seus movimentos sem ação – uma espécie de grito silencioso – que promovem um estiramento do sentido que articula seu próprio sentido como um roçamento no sem sentido, numa impossibilidade.
Toda potência de ser ou de fazer algo é, para Aristóteles, sempre potência de não ser ou de não fazer, senão a potência se confundiria com o ato. Essa é a grande dificuldade de pensar a potência, porque haveria que pensar a potência do não, pensar a potência de não pensar. O que nos levaria a uma aporia, uma vez que o pensamento não poderia nem pensar nada nem pensar alguma coisa. Para sair dessa encruzilhada, Aristóteles enuncia a tese do pensamento que pensa a si mesmo, ponto de equilíbrio entre potência e ato. O pensamento que pensa a si mesmo, não pensa nem o nada nem alguma coisa, pensa sua potência. É nessa tensão que se articula a criação, ou seja, fazendo experiência do seu impoder, algo se torna possível. Ou ainda, é do impossível de onde deriva a criação. Bartleby reivindica esse impoder, como sua absoluta potência, é dizer, desestabiliza a ética-estética do possível anunciando-se como im-possível, como um tremor, uma rachadura no poder. Os sujeitos-personagens de Fernando são sem verbo, ou seja, suas potências não passam ao ato: é uma potência de poder não, um im-poder, portanto. Formulando de outra maneira, podemos dizer que suas personagens são desreferencializadora ou desterritorializadora, na medida em que produzem outros sentidos não assentados na lógico do possível (de poder), mas que transita na linha fina e tensa da potência.
Deleuze diz que a fórmula bartlebiana corta a linguagem de qualquer referência e faz do próprio Bartleby um ser sem referência, ou seja, ele abre uma zona de indiscernibilidade entre sim e não, preferir e não preferir, potência de ser e potência de não ser. É um clandestino, um passeante, o aparecimento de um desaparecer. Ao perder a referência, perde-se também a mirada, isto é, perde-se a estrutura da visão instituída como sujeito-objeto. O olhar, então, jorra-se, transborda-se: o observador é aquele que olha sendo, deixando de ser: não há sujeito, não há objeto, o que há são caminhos. E, nesses caminhos, o sujeito passa a ser o observador e esse deixa de observar porque todo ele está no caminho. Intersecionalmente, o sujeito sem verbo rochadiano é aquele que perdeu o poder de ver e ser para devir. Renunciou o verbo, o ato, o poder, o sentido para delirar nas bordas, no calor do contato. Experimentou seu impoder, seu vazio como extensão, difusão, impulsão de uma força motriz que, frágil e tênue, desvanece e se fortalece nas turbulências do mundo.
Carla Carbatti é mineira, das montanhas, do mar, nômade. Doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela. Poeta com todos os átomos, possui moléculas poéticas ligadas à Subversa, Zunái, Germina, Alagunas, Mallarmargens, Diversos Afins, Escritoras Suicidas, Contratiempo, etc., à antologia RelevO 5 anos, ao Escriptonita: pop-esia, mitologia-remix& super-heróis de gibi e agrupadas no livro autoral Na Cadência do Caos, editado pela Urutau.
Esconde-esconde | breve conto do livro
Deixar o Eu que há em todo mim de lado seria possível? Um convite irrecusável, feito de maneira singela: – Conta um estória!
Os olhos que ainda não conseguiam decodificar as letras seguiam aquele amontoado de palavras, perguntando: Onde é que cê tá lendo?
O pai apontava o dedo para onde o olhar e a boca estavam.
Depois outro desejo: esconde-esconde!
Procurar, se esconder, achar. Olhos atentos, passos firmes: – Já vou!
Placas, senhas, números. Ela não conseguia se econtrar, o GPS em mãos a confundia mais. Precisava de uma voz familiar que lhe transmitisse calma, mas o silêncio dentro da sua cabeça era mais forte do que os ruídos que a cercavam.
Procurava um não sei que que sempre se escondia. Coisa esta que não se pode encontrar mas que por prazer se insiste em procurar.
| ROCHA, Fernando. Sujeito sem verbo. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2013. 100 p. |