apartamento, de Carla Bessa

Apartamento (apartar + -mento)

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:
substantivo masculino
1 m.q. apartação (‘ato ou efeito’)
2 separação, afastamento de pessoas que vivem juntas ou costumam estar sempre juntas; divórcio
3 separação da criança ou da cria do peito da mãe; desmame
4 isolamento (de alguém); retiro, solidão
5 qualquer bifurcação de estrada
6 cerca ou parede divisória; muro

SILÊNCIO

É que é assim ó, eu fico cinco dias dentro do albergue e cinco dias fora, cinco dias dentro e cinco dias fora. É porque… é… como é que eu posso dizer… Eu tô dormindo na rua, tô dormindo na Rua da Matriz. Lá é bom, tem comida, tem assistente social, lá é que é bom, eu tô dormindo na rua… não é perigoso, não. Não, não é, não! Quer dizer, depende do lugar que tu fica. Ali onde eu tô, não tem problema. Ali não vai aparecer alguém e… ninguém vai botar fogo em ti. Não vem! Porque tem polícia ali, sabe? Não tem fogo, não! Tem a polícia estadual, tem a assembleia, tem o…, o…, como chama mesmo?… O palácio do governador… Aí malandro não vem. Porque em outros lugares vem, sabe? Ah vem! E bota fogo. Eles botam fogo, assim, de bobeira. É.

SILÊNCIO

Eu não era da rua, não. Eu tinha casa, vivia com a minha mãe, né. E aí foi assim, eu não queria fazer nada, porque eu não tinha vontade para nada. Aí ela ficava puta, dizia que eu era vagabundo, me chamou até de veado, aí eu falei, ó, eu vou embora. Aí ela fez assim, ó, pegou as minhas coisa, pegou tudo, ajuntou tudo e ó, jogou fora, porta afora, e disse, vai, então vai embora! Aí eu vim embora, eu vim parar aqui. Em dois dias atravessei o país. Não era legal com a minha mãe, não, não era legal. E depois que ela falou aquilo que ela falou, depois que me botou na rua, aí então… Ela falou: vai. Então eu fui…

Mas eu vi ela depois, sim, eu enterrei a minha mãe já… Eu tava lá… eu vi todo mundo… Eu enterrei ela, ela já morreu… De repente me ligaram quando eu tava juntado com uma mulher aqui, aí…

SILÊNCIO

Mas não é que eu goste, quer dizer, eu gosto de morar na rua, mas se eu não gosto, eu não posso, porque se eu for depender do meu pai… Meu pai é vivo, meu pai é major da brigada aposentado, mas se eu for depender dele, ele não me dá um real, não me dá nada… Só que eu trabalho, é, sim, eu trabalho, sim, eu trabalho no transporte de mudança. Eu trabalho.

SILÊNCIO

Mas eu vivo na rua porque… eu não sei… eu já tive apartamento. Me puseram num apartamento, os assistente social arranjaram pra mim, mas eu não aguentei, eu não aguento. Eu fico assim, ó, andando pra lá e pra cá, eu não aguento, feito louco, ó, pra lá e pra cá. Eu não sei nem te explicar, eu simplesmente não consigo. Eu me sinto mal, eu me sinto apartado, eu não aguento. Eu já fiquei em apartamento, eu já tive tudo, eu já tive internado, já tentei me matar…

SILÊNCIO

Mas eu gosto é de morar na rua. É. É a minha vida. Eu sou feliz na rua.

Carla Bessa (Niterói, RJ — Berlim) estudou teatro na Unirio e na Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Trabalhou 15 anos em teatros alemães, austríacos e suíços como atriz e diretora. Atualmente, é tradutora literária alemão-português e escreve contos. O seu conto “Toc” foi publicado na antologia bilíngue Sehnsucht ist ein verdorbenes Wort (Saudade é uma palavra estragada) em 2016 pela editora bübül, de Berlim.