strogonoff, de V. H. de A. Barbosa

Risadas surgindo de um pequeno grupo. Um grupo que era, quando muito, um amontado de couro e tecido verde que se prostrava perante uma chama fraca, todos rodeados de vastidão branca de gelo, e negra de terra revolta, entrincheirados no buraco que chamavam de lar. Foi assim que o Oficial os encontrou, depois de vagar entre a neve e a loucura, apartado de seu destacamento.

O Oficial perdido foi promovido à Cozinha do pequeno grupo da cavalaria, tarefa que aceitou com alguma relutância enquanto estavam bloqueados pelo avanço dos poloneses e pela densa tempestade que os afligira semanas atrás. Os cavalos foram minguando, seja pela fraqueza, pelo frio, ou, o que mais irritava o Oficial, pela sua lâmina, que agora servia a pelar os animais, atrás de sua carne negra e gelada.

Na trincheira, concluiu o Oficial, depois de ser salvo, era reconfortante ouvir o som entrecortado dos risos curtos, mas longos o suficiente para quebrantar o frio.

***

Corto a cebola, as mãos salpicadas de pedacinhos do fruto — e os olhos de lágrimas —, quando ele me cerca por trás, os braços como tentáculos, beijando minha nuca e apertando meu seio esquerdo. Um tremor de repulsa varre minha espinha. Ele confunde isso com um prazer incontido, me dando um tapa na bunda.

“Estou cozinhando”, protesto.

Ele me pega o queixo e analisa meus olhos.

“Por favor, não chore. Sei que sentiu minha falta, mas aqui estou.”

“Bobo.”

Deixando a cebola de lado, esparramo os bifes de alcatra sobre a tábua. A faca desliza pela fibra sem resistência, separando gordura de músculo. Pelo canto dos olhos, ele me vê executando a tarefa e começa um papo qualquer, decerto acreditando que estou interessada.

“ … precisa ver o que ele faz com os cachorros, é inacreditável!”

“É mesmo?”

Ele apanha uma cerveja da geladeira, não sem antes apalpar minha bunda novamente, e ressalta que fico muito gostosa de calça de lycra. Põe-se ao meu lado enquanto fatio a carne vermelha em tiras.

“O que você tem hoje? Parecia fria.”

Procuro encará-lo, buscando nos olhos daquele homem uma resposta para uma pergunta que já esqueci. Com a faca na mão, beijo-o no canto da boca. Não, não sou mais capaz de sentir paixão por este homem. Ele não me traiu, não me fez mal, não me bateu. Ele me escreve uma música pelo menos uma vez por ano e me elogia e me dá flores. Seu sorriso é bonito. Mas…

“Estou com cólica, meu bem.”

“Ok, estressadinha”, e me aperta a bochecha.

Depois que a margarina derrete, jogo a cebola na panela. O delicioso cheiro invade a cozinha enquanto ela doura. Já translúcida, é a vez de acrescentar as tiras de carne. Sambo a colher de pau, fritando-as. A carne crepita.

“Tenho uma surpresa para você, querida”, ele me diz, empolgado.

“O quê.”

Ele me mostra uma fotografia de uma praia e diz que é o nosso próximo destino. Sorrio e desvio o rosto.

“Espera, amor, senão perco o ponto.”

Despejo conhaque sobre a carne, o cheiro de álcool invade as narinas. Ele ainda me encarando, como um cachorro aguardando aprovação. Seguro um fósforo. Acendo-o e o jogo à panela. As chamas sobem altas, mais atrativas que todo o resto do mundo, mais significativas que o convite.

***

Conhaque aquece o mundo e faz esquecer que a guerra nos espreita, costumava dizer o comdiv a eles, e entre um gole e outro, o Oficial olhou a garrafa e o creme azedo que tinha à sua frente, e por uma decisão impensada derramou o líquido sobre a caçarola, onde fervia a carne do trotador orloff, cortada em tiras para render mais. O cheiro animou seus companheiros. Rodion deu-lhe tapinhas nas costas pelo prato que prometia um banquete em meio à desolação. Qualquer alegria era a maior das alegrias. Qualquer esperança era a porta do Céu.

***

Sentados à mesa, ele me explica que o vento e o mar vão nos fazer bem, que sente saudade em me ver de biquíni, e que mal pode esperar pelas caipirinhas. Eu gosto dele? Insisto? Ele teima em sorrir, mostrando os dentes, e talvez eu me arrependa de seguir adiante. Ou não me arrependo de seguir adiante o que planejara? Quando prova o prato, fecha os olhos e se finge de dramático, elogiando até a terceira geração da minha família, congratulando-os pela genialidade em ter me gerado. Um prato tão simples esse…

Ele me assistindo encarar a panela, pergunta o que foi.

“E se a comida estivesse envenenada?”, questiono.

Ele ri.

“Hein.”

“Para de brincar assim… não é legal. Já conversamos sobre isso.”

Fico séria.

Ele larga o garfo e coça a garganta.

“Você…?”

Explodo em risadas e ele me segue, voltando a comer. Todavia, qual a graça? Meus músculos da face estão tensos, minha boca se escancara, há um som repetido saindo das minhas cordas vocais, mas não há graça alguma. Graça nenhuma.

***

O lobo encosta o focinho na tigela congelada e fareja a novidade. Funga de desgosto. Uma pata sua verifica a consistência da carne congelada. Mas para chegar até ela… tantas indumentárias, tanto couro e metal! O banquete nada tem de digno de uma fera. Uiva para o nada. Uiva para o branco da neve salpicada de verde e negro.

***

Depois que ele termina a refeição, seguro suas mãos, antes que ele se ofereça para lavar a louça. Não há medo.

“Felipe.”

“Oi, querida?”

“Eu quero a separação.”

V. H. de A. Barbosa mora em Londrina/PR, onde trabalha como assessor jurídico. Mestrando em Ciência Jurídica na UENP. Editou os blogs Zaratustra tem que morrer e Ruinaria, entre 2007 e 2013. Tem contos e crônicas publicados. Atualmente coordena uma coletânea de contos de jovens autores.