Berenice tem seus 40 anos. É funcionária antiga da Caixa Econômica. Entrou com uns 25, pouco antes de se casar com o Ottoni, economiário. Ele trabalha em órgão do Governo, sempre diz qual é, mas eu nunca gravo.
Moram no 107, embaixo da gente, e têm um casal de filhos, a Luciana e o Pedro, 13, 14 anos os dois. Reparo sempre a Luciana de namorico com o Thiago, filho do Marcondes e da Yara, do 308. A Yara é enfermeira no posto de saúde aqui perto, sempre levamos nossos filhos lá para vacinar.
O Marcondes trabalha com transporte escolar. Vejo-o sempre sair cedo para pegar os alunos. Manobra a van no pátio do prédio às cinco da manhã, vai embora antes que chegue a aurora encerrando o silêncio da madrugada.
Quem aproveita é o João Carlos, aqui do nosso lado, do 205. Antes de o Marcondes descer, ele já está lá, encostado na pilastra. Vai de carona até a rodoviária e de lá pega o 556 para o Centro. Só entra às oito no escritório de contabilidade, mas saindo bem antes economiza uma passagem.
A mulher do João não trabalha, sofre de umas crises nervosas. A vida dele não é muito fácil não, mas não o vejo reclamar. Às vezes desce no jardim à noite para fumar. Mesmo acordando com o dia ainda escuro, vez por outra fica lá até nem sei que horas, tragando e olhando as luzes que projetam sombras de plantas e de árvores, os pensamentos parecendo perdidos.
Quando está no jardim fumando, sempre troca dez minutos de conversa com o Uédson, morador do 106 e que chega mesmo tarde do serviço, quase onze horas. Trabalha na gráfica de um grande jornal, só sai de lá quando o jornal vai pras bancas.
Uédson é casado a segunda vez, com a Antônia, assistente social do governo. Ela engravidou ano passado, mas perdeu. Lembro-me do choro saindo sem querer do apartamento quando voltaram do hospital, um choro que ela não queria fosse ouvido por ninguém no prédio nem na Terra, mas era porque não se continha de tanta tristeza.
É que eles também moram embaixo e dá para ouvir o murmurar de conversas entrecortadas no fim da noite, sempre mais altas e mais nítidas quando recebem a Joana, do 303, separada, também seus quarenta anos. Cria dois meninos, sozinha, esse tipo de mulher guerreira que as novelas tanto gostam de copiar da vida real.
É alegre a Joana, divertida, só que volta e meia a pego cabisbaixa olhando pro chão, como se enxergasse dentro dela mesma. Quando sente que alguém se aproxima, ergue a cabeça, encara o vizinho e trata logo de arrumar um sorriso que ponha pra debaixo do tapete do rosto a poeira da angústia e da incerteza.
Isso é comum a todos nós, bons vizinhos, que subimos escadas com sacolas de compras e filhos dormindo no colo; que nos cumprimentamos e paramos para saber da vida do outro quando há tempo; que cumprimos nossos deveres da melhor forma que achamos; que pagamos prestações, mensalidades; que fazemos amor às vezes voraz, às vezes contidamente; que certas noites rolamos na cama calados, procurando pegar logo no sono antes que nos enlouqueça a insistente angústia da vida.
André Giusti é carioca, nasceu em maio de 1968. Mora em Brasília desde 1998. É autor, entre outros, de A solidão do livro emprestado e A liberdade é amarela e conversível (contos, Editora 7Letras), e de Os filmes em que morremos de amor (poesia, lançado recentemente pela Editora Patuá). André Giusti também é jornalista e mantém o site/blog www.andregiusti.com.br